domingo, 10 de fevereiro de 2013



          
12. No Grupo Escolar Martiniano  de Alencar




e os irmãos, quais retalhos descosturados, tristes e desamparados,
 não mais puderam partilhar da mesma sala de aula.






Quando Aécio e eu, ingressamos no Grupo Escolar Martiniano de Alencar, nosso pai nos presenteou com bolsas de couro. Bolsas lindas. A do meu irmão marrom. A minha azul marinho. Um primor. Recebemos o presente aparentando alegria porque, realmente, ansiávamos pelos caixotes de madeira com “dobradiças” de aparas de couro, usados pelos demais alunos. Ficamos silentes, mas deslocados. Nossos colegas, após as aulas, regressavam as suas casas cantando e acompanhando o compasso da música, com batidas nos aludidos caixotes. Eu trocaria, com certeza, minha bela bolsa por um deles.



G. E. Martiniano de Alencar à esquerda da Igreja do Rosário

G. E. Martiniano de Alencar, Barbalha, Século XX. Vista aérea.

                

Nosso Grupo, hoje  E E F Senador Martiniano de Alencar. 2013-Barbalha
Nas féria que antecederam nosso ingresso no curso primário, nossos primos mais velhos, e por isso considerados mais sabidos, nos advertiram que acabara a “maciota”. “Agora veremos se os dois se divertem surrupiando tamarindos do padre, ou ficam  amedrontados com os gritos de Dona Mariinha Teles, ante a autoridade da dona Neném Celestino, com a firmeza da dona Maria Angelina. Dona Zefinha não é moleza,  é gentil. Vamos ver como  se viram nessa nova vida que vem pela frente."
Senti falta dos jardins do "meu "MARTINIANO DE ALENCAR.
                                                                                    

A princípio ficamos tristes. Acabara nossa parceria.  Quando do nosso ingresso no Grupo Escolar, não havia turmas mistas. As meninas frequentavam as aulas no turno da manhã, os meninos, no da tarde. Aécio e eu nos separamos. Ficamos cada um por sua própria conta. Como ele acostumara-se a que eu anotasse os recados, cuidasse das tarefas de casa, perdeu-se um pouco. Também, a irmã providência esteve sempre ao meu lado. Quando cursei o segundo ano primário, dona Ozenir Correia, foi minha professora. E que professora! Ela sabia despertar em cada aluno, em cada aluna, o melhor de sua personalidade. Além disso, era educada, dedicada, competente, antenada e amiga. Tímida, franzina, calada eu me sentava na carteira da primeira fila e não perdia nenhuma de suas sábias palavras. 
Professora Ozenir Correia
                                             
                                            
Terminado o ano, ela solicitou junto a diretoria, permissão para acompanhar aquela turma que lhe parecia especial. Solicitação acatada, tive o privilégio de ser guiada por ela, do segundo ao quinto ano primário.


Dona Ozenir, conosco, organizou o horário semanal de forma a usufruirmos o melhor daquilo que a escola nos oferecia. Assim além das aulas de Português, Aritmética, História, Geografia Ciências, Ginástica, Jardinagem( havia um lindo jardim, com canteiros maravilhosos, à entrada do Grupo. Aos alunos de cada sala cabia conservá-lo bem tratado, adubado, podado, isento de insetos nocivos. No dia da árvore, recebiam premiação os alunos cujos canteiros mais se destacavam tanto pelo cuidado, quanto pela beleza) e Trabalhos Manuais, nos presenteou com horas de leitura, de canto, de poesia, de redação e de jogos e recreação.  Era a mestra perfeita, sonhada por qualquer pessoa que deseja progredir na vida.


O Grupo Escolar Martiniano de Alencar gozava o conceito merecido de ser um dos mais sólidos e  desenvolvidos estabelecimento de Ensino Público do Estado do Ceará. Sua diretora, dona Josefa Alves de Sousa, dona Zefinha Couto, com suas filhas, dedicou a vida a educar crianças e jovens. Para nós, alunos e alunas, ela era alguém especial, perfeita, íntegra, educada, justa, culta e amiga, que o bom Deus colocara em nossas vidas. Durante os cinco anos que estudei naquela primorosa escola, nunca ouvi de nenhum aluno, uma só palavra que ferisse sua dignidade. Dona Zefinha, como a tratávamos, não nos impunha o medo como arma de poder. Nós a respeitávamos e temíamos magoa-la. Em nós, logo que a conhecíamos, nascia um sentimento de profunda gratidão, de orgulho, por ser ela nossa diretora. 


Homenagem dos atuais alunos da Escola Senador Martiniano de Alencar
á dona Zefinha Couto.

Reverente, eu a saúdo e dela sinto falta. Como o mundo de hoje necessita das dona Zefinha Couto! Que garra aquela mulher possuía! Que ousadia! Que formidável educadora  foi ! Como nós, filhos e filhas de Barbalha  lhe somos devedores! Descanse em paz, dona Zefinha. A semente que a senhora plantou cresceu, multiplicou-se. Cem por um, é o que a senhora pretendia. Muito mais de mil por um, foi o colhido. Como a senhora, também sou educadora. Posso ouvir seu coração de mestra amiga, batendo ao compasso dos alunos: exortando-os, advertindo-os, convidando-os a empreender grades voos. Obrigada, Dona Zefinha.


Relembro saudosa e orgulhosa os finais de ano em nosso Grupo Escolar. Como vibrávamos ao término de cada ano letivo com a mostra de trabalhos manuais por nós realizados! O que produzimos exposto artisticamente, convidando a visitação. Tinha de tudo criado, esculpido, bordado: desde cartõezinhos bordados com linha grossa, pelas alunas do primeiro ano, às belíssimas colchas e toalhas bordadas pelas alunas do quarto e quinto ano, bem como gaiolas, pranchas e artísticos quadros esculpidos em madeira, trabalhados pelos meninos. Dona Ozenir, exímia bordadeira, nos ensinou, a nós meninas de Barbalha, os segredos dos diversos pontos de bordado.

E o pelotão de saúde? E o Grêmio Literário? E as Semanas de Arte e Poesia? Quanta Harmonia! Quanta dedicação e ousadia! Nós barbalhenses nunca pagaremos, por mais que tentemos, o bem que o Martiniano de Alencar nos fez. Em que moeda se paga o bem? A dedicação? A esperança plantada nos corações?


No quinto ano primário nos apresentavam um livro volumoso com o título mais ou menos assim: Curso Completo para o Exame de Admissão ao Ginásio. Além de entender, assimilar, desenvolver, memorizar seu conteúdo, éramos treinados em correspondência comercial e oficial. Ao término do quino ano primário,  todos os alunos estavam aptos a assumir os mais variados empregos, além de receberem o título de Professor ou Professora de Quinta Entrância, que lhes outorgavam o direito de alfabetizar o Povo Brasileiro.




Alunos do Martiniano de Alencar  X  dona Rulinha



Mais ou menos na metade da rua do Vidéo, à direita de quem se dirige a Igreja do Rosário, caminho para o Grupo Escolar Martiniano de Alencar, ficava a casa de dona Rulinha,  exímia costureira de roupas masculinas.
                                                         
Rua do Vidéo. Barbalha de hoje, 2013
A dedicada senhora, para que sua freguesia não sofresse prejuízos ocasionados pela perda da roupa “encolhida” após a primeira lavagem, molhava todos os tecidos antes de usar com maestria, sua tesoura e sua preciosa máquina de costura.



Muitas vezes vimos sua calçada coberta por variados tecidos. Isso não nos incomodava. Havia o lado oposto a sua casa totalmente a nossa disposição. Entretanto, nossa alegria expressa por nossas canções acompanhadas da “batida” dos caixotes escolares, a aborreciam muito. Acostumamo-nos a vê-la, transtornada, à porta de sua casa acompanhada de sua cadelinha, Joly, uma linda , branca, pequena, esperta e bem treinada cachorrinha, ordenando à mesma para nos nos “atacar”.

                                                                                                                                         
Aqueles seus rompantes, nunca nos incomodaram. A cadelinha era uma só, nós, muitos. E a enfrentávamos com nossas bolsas e caixotes. A senhora, pouco, a pouco deu-se conta que não a levávamos à sério. 




Ficamos surpresos quando, em uma manhã, no início de maio de 1946, após as orações e cânticos diante o altar da Virgem Maria,(naquele ano de cetim verde recoberto de filó branco e repleto de carneirinhos. Cada um deles representando  um aluno ou aluna, trazendo seu nome escrito na barriguinha.  Abaixo do “monte verde” um lobo de boca aberta. Os carneirinhos, presos por alfinetes, no montanha fofa, subiam o monte até ficarem bem juntinho à Virgem, ou dele desciam em direção ao lobo, dependendo do comportamento e do rendimento escolar de cada discente. Ir para  a boca do lobo,  era um terror, antecedido de um comprido “sermão” no qual a maléfica ação daquele, representado pelo carneirinho, era explicitada) nossa diretora nos informou que “moradores da rua do Vidéo haviam se queixado junto à diretoria acerca de nosso comportamento quando do retorno a nossas casas”. Sugeriu que durante aquele tão lindo mês dedicado à Mãe de Deus,  voltássemos silenciosos as nossas residências.


  
A princípio concordamos com a sugestão. Entretanto, quando um colega morador das vizinhanças da dona costureira, nos comunicou que a mesma “vangloriava-se” por haver calado os alunos do grupo, sentimo-nos usados, traídos, desrespeitados. “Muita gente merece receber um bom troco a tudo isso” falou com autoridade um líder estudantil. Daí em diante a “coisa" foi esquentando e, quando pensávamos que a historia havia morrido, a "turma dos espertos" nos convocou para uma rápida reunião na hora do recreio. Antes de falarem exigiram que jurássemos, beijando os dedos em cruz, que nenhum de nós comentaria o que ali fosse tratado. Juramento prestado, resolvido ficou que sairíamos diariamente cantando e batucando do Grupo Escolar até o início da rua do vídeo, um trecho bem pequeno. Daí em diante, passaríamos silenciosos para a calçada correspondente à da casa da dona Rulinha. Se houvesse tecido exposto ao sol na calçada, todos nós batucando, cantando, gritando e correndo, passaríamos por cima do mesmo, deixando nele, as marcas de nossos sujos calçados. A pedido do líder, tiramos nossos sapatos, chinelos ou tamancos e sentamo-nos no chão em círculo. "Ordenamos" aos nossos pés que fossem corajosos, não se intimidassem quando dono Rulinha gritasse, ou  quando a cadelinha Joly latisse, corresse e nos perseguisse.






Juntamos nossas mãos e, mais uma vez, juramos silêncio.


Naquele primeiro dia de guerra, o" tapete” cobria toda a calçada da “boca frouxa”. A liderança nos avisou que silenciássemos totalmente e somente a uma ordem sua, atacássemos batucando nos caixotes, cantando, gritando e correndo sobre os tecidos úmidos. 


Pega de surpresa, dona Rulinha gritava: "pega,Joly. Corre e morde estes pestes, Joly. Mata estes desgraçados, Joly".  A cadelinha não nos alcançou. Suados, felizes, sentamo-nos no chão bem mais adiante, e rimos muito. O recado fora dado. Agora voltaríamos a nossa antiga e pacata vida, pensei.





Ledo engano. Nenhuma paz à vista. Daí em diante, o grupo líder, sentindo-se fortalecido, passou a sortear “quem” passaria sobre o "tapete" da dona Rulinha. Eu, encolhida, esperava confiante que nunca me indicassem para tal ato. Mas a minha vez chegou.

- Estás sempre na primeira fila prestando atenção e respondendo tudo à professora. Sais correndo mal a sineta avisa o recreio. Pensas que escaparás? Pensas? Pois te enganaste. Chegou tua vez. Estamos de olho em ti. Se, a partir de hoje, não caminhares ou correres, e sozinha, sobre os tecidos da megera, não serás mais nossa amiga.

- Posso pensar sobre o assunto e responder amanhã?

- Claro que não. Aqui é assim: ou tu estás conosco, ou estás contra nós.   "Um por todos e todos por um.”

- Bem, eu tentarei.

- Tentarás? Tentarás não. Agirás. Já percebeste como está vivendo aquela tua amiga, aqui entre nós? Está sozinha. Não pode participar de nenhuma brincadeira. Fica o recreio todo lendo na biblioteca e isso se o bibliotecário escolhido não for um dos nossos. É bom  que resolvas logo o que queres.

- Se meus pais descobrirem que eu sujei os tecidos da dona Rulinha , a peia come.

- O que é melhor para ti: uma surra , ou ficares isolada das brincadeiras?

- Prefiro a surra.

- Então está resolvido. Se hoje a mulher estender panos em sua calçada, pisarás nos mesmos. Concordas?

- Sim. Estou de acordo, embora com muito medo.

- Então tá.

Quando de regresso, naquele dia não havia tecidos na calçada. Respirei aliviada. No dia seguinte, porém, lá estavam eles à minha espera. Os líderes me prepararam bem passando barro e tinta em meus pés descalços.



Respirei fundo e qual raio, pisei e corri sobre o úmido tapete ouvido dona Rulinha gritar “ Pega,Joly. Morde Joly. Mata esta menina safada, Joly. Que menina desaforada! Mata, Joly". Meu coração batucava acelerado. Joly nos meus calcanhares... A turma toda gritando. Joly não me alcançou.  Passei no teste. 


Cansada mas eufórica, sentei-me em um dos batentes da farmácia de seu Alfredo Correia e esperei o coração voltar ao normal. Olhei para meus pés sujos de lama e de tinta e resolvi entrar de mansinho em minha casa escondendo assim a “prova do crime”. Lavar bem meus pés, calçar meus sapatos e só então, me juntar à família.

No dia seguinte o chefe da turma, todo prosa, garantiu-me que não mais me "obrigaria" a pisar nos tecidos úmidos da dona Rulinha. E acrescentou:
- Fizeste um trabalho excelente. As marcas que deixaste nos tecidos da falante costureira, riram dela. A lama aliada as tintas que os amigos passaram em teus pés, surtiram um grande efeito. És uma menina de pés especiais. Tuas pegadas riram dos esforços da "boca-frouxa." 





Quando deixei o Martiniano, dois anos depois, os tecidos trabalhados por dona Rulinha continuavam sendo alvo de maldades como acima relatei.





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