sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

25. Bárbara Maciel Landim, mãe Neném





                  25. Bárbara Maciel Landim,
                mãe Neném
                                        
Guiada pela sabedoria, vovó Neném selecionava os 
retalhos que costuraria em sua colcha.
 Acolhia com alegria, aqueles que Deus lhe enviava. 

"Resplandecente é a sabedoria, e sua beleza é inalterável: os que a amam descobrem-na facilmente. Os que a procuram encontram-na. Ela antecipa-se aos que a desejam” Sb. 6,12-13.


Bárbara Sobreira Maciel ou Bárbara Maciel Landim, Mãe Neném, avó materna dos Landim Luna, filha de Francisco Alencar Landim e de Francisca Sobreira Maciel, em Pernambuco nascida, na grande fazenda  Barriguda, afilhada de batismo de Padre Cícero Romão Batista, acordava com o sol e, diariamente, a Sagrada Eucaristia, recebia.


Bárbara Maciel Landim, Juazeiro 1963
                                                                   


                                           
Bárbara Maciel Landim e a filha Nair/1930



Bárbara Maciel Landim/ 1909
                                                                     

                                              
A sabedoria a esperava sentada à soleira de sua porta e em sua companhia, o dia passava . As duas, aliadas, amavam-se e entendiam-se. Nada Bárbara fazia, sem a amiga consultar. E crescia em conhecimento, contentamento, discernimento e harmonia. Amizades cultivava, a todos cativava, de ninguém se esquivava. Desde um dos mais competentes médicos de Juazeiro, Doutor Mozart Cardoso de Alencar a Mané Melador,  pintor, que se atrapalhava e tudo sujava, quando um serviço arranjava, ela pacientemente escutava, acolhia, animava. Muitas vezes quando à noitinha as novenas terminavam, o vigário a convidava para um cafezinho em sua calçada. Numa cadeira de balança  sentava-se, notícias diocesanas, escutava. Ouvia mais do que falava. Opiniões emitia, se consultada. Não se adiantava. E assim com seu modo de ser, buscou nos transmitir o saber viver.

Quando para a eternidade minha mãe, sua filha, partiu sem antes avisar, (14/10/1955) a amiga sabedoria a susteve de pé como antes o fizera com a Mãe Maria. Agonia sentiu, mas firme resistiu.  Nada mais podia fazer pela filha. Ela se fora. Mais uma perda em sua vida, de perdas recheada. Os netos, certamente, a procurariam e sempre a encontrariam.  Foi o que afirmou. E nunca se omitiu. Nem tampouco  adiantou-se. Esperou com a porta abeta, alerta, vigilante a cada instante, sem stress, nem rompantes.


1956> Aide e a avó, Bárbara Maciel Landim(Nenem)
                                                                                                                                
Bárbara Maciel Landim e o neto Carlos Aécio. CPOR


Apreciava tudo que de bom a vida lhe oferecia, e com maestria. Nada temia. Para que  preocupar-se, a cabeça ocupar com aquilo que não se sabe se acontecerá? Quando os primeiros aviões , no aeroporto da Chapada do Araripe pousaram, uma incontida alegria a invadiu: poderia com conforto, ao Rio de Janeiro  viajar. A saudade dos filhos e filhas matar. Transformou-se em viajante. Ia ao Rio de Janeiro e de lá voltava toda prosa, com sapatos e bolsas lindas, terninhos bem cortados, travessas nos cabelos, e um sorriso de pessoa que se sabe amada, apreciada.

                                                                         



Quando terminei o curso de pedagogia ganhei dela um passeio ao Rio de Janeiro. Meu primeiro passeio. Meu primeiro encontro com o mar.

                                                                    
                                                                        
       Aide, fevereiro de 1957- Copacabana
Rio de janeiro, Copacabana, posto 06
Aide, fevereiro de 1957, Rio de Janeiro

Aide  -  Copacabana, fevereiro de 1957




57
Ao receber de Francisco Ribeiro Parente a declaração de seu amor, convidei-o a ir comigo à Juazeiro, a casa de minha avó. A princípio estranhou. Ao conhecê-la entendeu o porquê do meu convite. Os dois tornaram-se mais do que amigos. 

Vovó, Chico Parente e Francisca. Juazeiro 1963




Vovó o adotou como neto e com ele partilhou suas memórias. Ele a admirava e me dizia nunca haver conhecido alguém tão inteligente, tão sábia, tão aberta à vida quanto ela.

Minha mãe Neném tinha ditos engraçados, afinados, filhos de sua vivência:

- Dizem que a morte é o castigo do pecado, o castigo que recebemos por intermédio de nossos primeiros pais. Eu acho isso errado. O castigo, se é que é castigo, é a velhice. Eu fui uma mulher linda. Hoje sou uma mulher murcha, cheia de pelancas. Há castigo maior do que este para uma mulher que foi muito amada e admirada?

- Quer ser bom? Morra. Todas as pessoas que morrem viram santas.

- Que história e essa, dona Neném?

- Ora Chico, as pessoas têm medo de assombração. A verdade é uma assombração para muita gente. É por isso que preferem viver na mentira.

- Explique-me melhor o que a senhora está querendo me dizer.

- Bem, eu e Zefinha éramos muito amigas. O marido dela, uma peste de tão ruim. E para completar a ruindade, era sovina. Deixava a família passar fome. Uma desgraça de pessoa. É claro que minha amiga, as pessoas não dizia, o que de ruim, o marido lhe fazia. Ele, todos o tinham como muito econômico. O danado morreu. Eu fui à sua sentinela. Muitas carpideiras chorando e rezando o ofício das almas. Minha amiga ali perto do defunto pareceu-me que dormitava. Uma toalha, sua cabeça cobria. Mesmo assim, dela aproximei-me. Abraçou-me e quando quis me falar algo, uma pessoa  que eu não conhecia, dela  aproximou-se. Assim, não pude escutar o que  tentava me falar. Demorei-me um pouco mais. Ouvi das pessoas o lamento: “ Coitado! Tão bom, tão santo! Morreu tão novo! Era um santo homem. Deus o tenha.” E a cantilena continuava. Zefinha, coitadinha, toda encolhidinha, olhou em minha direção pedindo-me proteção. Eu desarmada, tonta, sufocada com a incabida  lamentação.   Indignada, com a mentira deslavada, à passos curtos e custosos, de  mim, por fim, achegou-se. Puxando minha cabeça nos meus ouvidos cochichou:
- Santo? Neném. Santo? Não aguento, Neném, este lamento. Foi-se finalmente. Estou contente. Neném, tu sabes como eu, a fera que ele era. É santo agora o danado, o safado. Agora, indo, é para todos muito lindo. Virou santo, Neném. Que maldade! É santo esta ruindade.

 - E o que a senhora disse à viúva, dona Neném?

Ora, eu disse o óbvio: “ Graças a Deus, ele se foi. Agora podes viver sossegada. Pega todo o dinheiro dele e sai desta cidade. Aqui, santo ele é. Uma mentira. Mas morreu, é um santo morto . Morto, minha amiga, morto. Partiu. Foi-se. Deixou-te livre, mulher.  Vá viver tua vida onde nunca ouviram falar dele.

- E ela fez como a senhora recomendou?

- Fez sim. Em Fortaleza foi morar e vive feliz tomando banho de mar. O santinho está enterrado, morto, sepultado. No cemitério é seu lugar, e minha amiga feliz, seu dinheiro a gastar. É por esta e por outras mais, que eu afirmo: Quem quiser virar santo, morra.

Chico Parente amava ouvi-la contar suas histórias e gargalhava. Os dois entendiam-se e muito se amavam.

- Zé, meu Zé, era fogo vivo. Eu tinha de estar de olho nele. Uma vez ele enrabichou-se por uma mulher que morava numa rua perto da nossa. Quando eu soube quase morro de agonia. Ele ao chegar em casa, encontrou-me chorando.

- Por que choras Neném? Fala, diz-me o porquê de tantas lágrimas.

-(Guardei silêncio. Não emiti uma só palavra)

- Ora mulher, se não dizes como saberei? Fala. Diz-me, por que choras?
-( Solucei, solucei, e nada falei) 

- Ah! Será que te encheram a cabeça com histórias? Estás chorando por causa daquela mulher que me persegue?

- Sim, Zé.

- Pois bem, choraste até hoje. Não chorarás mais. Ela não merece uma só de tuas lágrimas.

- E no dia seguinte, Chico, ele colocou a mulher no trem e a despachou para longe. Meu Zé era assim, não aguentava me ver triste, chorando. O mal das mulheres de hoje é que não descobrem qual é a fraqueza do marido. Eu descobri logo a fraqueza do meu Zé.

- E ele era bom para a senhora, dona Nenem?

- Ora se era, Chico!  Ele me cobria de tudo o que há de bom e de bonito.  Gostava  de me ver bem arrumada, e por isso eu caprichava nos vestidos. Um dia ele presenteou-me com um cavalo negro com selim e arreios enfeitados de prata. Uma lindeza. Eu cavalgava bem, também nasci em uma grande fazenda. Cavalgar é uma arte que se aprende desde muito cedo no sertão de Pernambuco. Nesse cavalo eu passeava, as amigas visitava, e acompanhava desfiles e até procissões. Meus cabelos de tão compridos iam até quase as ancas do animal. Não faz parte de minha natureza chamar a atenção sobre minha pessoa. Mas a verdade sempre aparece. Eu era uma mulher muito elegante e naquele cavalo, sem saber, destacava-me entre as demais companheiras e amigas.

- Posso bem imaginar, dona Neném, a senhora continua especial.

- Não precisa me adular, Chico. Hoje sou uma velha. Em mim, guardo belas lembranças dos dias de outrora. Mas minha beleza externa acabou-se. Veja, meus cabelos estão ralos. Dizem que é porque tenho muitos anos. Faço de conta que acredito nisso. Entretanto, Chico, naquele dia em que eu estava em meu cavalo participando de uma passeata, um senhor que nunca me vira porque morava longe de Juazeiro, encantou-se com minha beleza. Ananias, que estava ao lado do dito cujo, avisou-o que eu era a esposa de José Batista Landim, seu Landim. E o senhor retrucou:É um homem de muita sorte esse seu Landim. A senhora dele é elegante, monta muito bem, é discreta e não sabe que é a mais formosa de todo o Juazeiro. Nunca vi em minha vida uma mulher tão especial como esta.

- E o que aconteceu, dona Neném, seu Landim soube dessa história?

- Não, meu caro amigo, porque o senhor que me elogiou, não me ofendeu ou fez algo que merecesse represália. Mas aconteceu uma coisa muito pior. A danada daquela mulher que perseguia meu Zé, aquela de quem eu te falei, era filha de cigana, tinha sangue de cigana. Vendo-me alegre, bonita, de bem com a vida, jogou-me uma praga dizendo que meu cabelo cairia todo e careca eu ficaria. Soube tudo isso pelo Ananias, no tempo, um meninote muito amigo de nossa casa. E é por esta razão que meu cabelo cai de montão. Mas Deus é mais. Muito mais mesmo. Todo santo dia, caem cabelos meus e nunca fiquei careca.

- Sabe, dona Neném, eu sempre comento com sua neta que, o que mais admiro na senhora, além de sua pródiga memória, é sua suavidade e afabilidade. Nunca a vi alterada. A senhora sabe conservar-se inteira, sem orgulhos bobos em qualquer situação. Até quando o acontecimento é amargo, difícil, a senhora tem um modo de agir que atenua o amargor, as dificuldades. Creio que nos momentos de mais prosperidade que viveu, nunca humilhou ou destratou nenhuma pessoa. A senhora é daquelas mulheres que sabem esperar com paciência e transformar momentos difíceis em vitórias. E isso sem  nenhum orgulho.

- E para que serve o orgulho, meu filho? Para que serve? Pelo que percebo, serve somente para que os tolos se tornem ainda mais tolos. Deus, que é Deus, nunca se orgulhou de nada. Fez este belo mundo somente para nos agradar, para nos mostrar sua beleza e seu amor. Agora vá eu querer ser a dona do mundo? Não, meu caro. Passei a vida aprendendo a tirar proveito tanto das honras, quanto das decepções e entregando tudo nas mãos daquele de quem sou irmã: O Santíssimo Sacramento. E quero honrar essa irmandade sendo sempre gente como Nosso Senhor quer.

Meu avô materno, José Landim, o Zé de minha Avó, era seu argumento preferido para tudo o que lhe acontecia sendo bom, ou se ruim fosse. E isso depois de ele morto. Quando minha avó desejava alguma coisa e não conseguia, logo dizia:        
                                                            
José Batista Landim/ 1909
O ZÉ de minha Avó.


José Batista Landim/ 1941


- Se Zé fosse vivo, isso não aconteceria. Zé fazia tudo o que eu queria.

Quando sabia que uma filha ou neta  queixava-se do marido, exortava:

- Bobagem dela, está dando ouvido a falatórios. Zé, que Deus tampe seus ouvidos ou abra se quiser, era um “rabo de saia”. Se eu não estivesse bem de olho, de tudo era capaz. Homem, não há diferença, é tudo igual. A mulher é pescoço do homem, vira a cabeça dele para onde quiser. Eu sabia cuidar da cabeça de meu Zé.  A mulher tem que ser inteligente, deixar que o marido pense que manda, mas ser sempre previdente.

Minha avó nunca deixou de se cuidar. Semanalmente uma manicure ocupava-se com suas mãos. Mesmo idosa, ao sair de casa, calçava seus lindos sapatos de saltos grossos, vestia seus terninhos bem feitos, punha seu trancelim. Adornava com travessas bonitas os poucos cabelos, sempre bem presos.  Ensinava com seu agir que se amar e  cuidar-se é necessário, é sadio.  "Quem não se ama nem se cuida, não pode amar. Nem a Deus ama. Quem não se enfeita, por si se enjeita. Marido gosta de ver sua mulher bonita, bem tratada e enfeitada.”

Sua casa sempre limpa e bem arrumada revelava o caráter da dona. Minha avó não se apegava a tradições nem a objetos. Trocava os moveis com uma facilidade invejável. E argumentava:

- A vida é curta. Passa ligeira. Para que cadeiras de madeira e palhinha, eu quero? Cadeiras duras, sem  conforto? Eu quero, e por isso vou agora comprar, um divã macio para minha novelas escutar e com minhas visitas conversar.  Quem quiser velharias guardar, que guarde. Em seu direito está.

E sempre que desejava, trocava seus móveis. A ninguém consultava.

Nunca vi nem ouvi algo feio ou grotesco, vindo de minha avó. Ela era paciente e doce, sábia, ativa, trabalhadora e zelosa. E não deixava que lhe tirassem a liberdade. Ensinava aos netos através de ações e não de palavras. Para ela o lugar de dormir, a cama onde alguém descansa, dorme, é lugar sagrado. Não pode ser tocado a não ser pela pessoa a quem a mesma pertence. Se alguém desavisado sentasse em sua cama, sempre bem forrada com colchas bordadas e sem nenhuma ruga, nada dizia e até conversava com a pessoa. Mas tão logo a mesma saísse de sua casa, o lençol, a meus olhos impecável, retirava e no cesto de roupa suja, depositava.

- Vovó, o lençol foi posto em sua cama hoje. Eu vi Francisca arrumando sua cama.

- Mas alguém sentou-se e amarrotou a colcha da cama. É melhor para mim, e para minha saúde, livrar-me do amarrotado e da sujeira.

Todos os dias, invariavelmente, após tomar seu café da manhã, preparava a mesa para receber o filho mais velho, aquele guardado ciumentamente no coração, Elvídio, que a visitava todos os dias. Ao chegar à porta  anunciava-se com um manso e sonoro:

- MÃE?
                    
1955- Elvídio.


Ela o recebia com incontida alegria como se aquele fosse o único dia dos dois. Nós, os netos, sem que ninguém nos tenha ensinado, sabíamos ser àquela hora sagrada para os dois. Apenas pedíamos a benção ao tio e nos retirávamos da copa, lugar onde os dois conversavam. Ela  fazia-lhe tapiocas fininhas, passava um café novo e bebia uma xícara do mesmo em sua companhia. Os dois, então, fumavam um cigarro. Ele, inteligência privilegiada, conversava sobre sua família e informava a mãe  sobre tudo o que ocorria no mundo. Creio que nenhum dos netos jamais procurou ouvir a conversa dos dois. Vovó, após a saída do filho partilhava as notícias "fresquinhas"que do filho recebera. Assim mantinha-se atualizada mas, sábia, não alardeava o seu saber. 
                                                                         
                                                            

1955>Dídio Lopes, Gumercindo Ferreira Lima, José Marques da Silva
ELVÍDIO MACIEL LANDIM, Pe. Nestor Rabelo Sampaio, Walter
 Barbosa ,Dr. Genefildes Matos e Irmã Coimbra. 

O grupo fundou e constituiu a  primeira diretoria  
 da Sociedade de Amparo aos Mendigos de Juazeiro




Intestino obstruído, a doença que minha avó mais temia. A morte para ela era coisa natural.  Mas morrer com o ventre inchado, ia além do que podia suportar. Apavorava-se ante tal possibilidade. Por esta razão não deixava de tomar laxantes e outros medicamentos que julgava necessários ao funcionamento de seus intestinos.

Com 96 anos, cuidava bem  de sua casa, participava diariamente da missa, costurava, inteirava-se dos ocorridos mundiais e acolhia os netos com carinho e atenção.

Um dia recebi um chamado seu. Atendi-o com presteza. Se ela me chamava, algo de sério acontecera. Ao receber-me, entregou-me a chave de seu guarda-roupa e pediu que abrisse a porta esquerda do mesmo, pegasse uma caixa redonda que encontraria na última prateleira. Perguntei-lhe se era uma com o nome prado. Ao receber resposta afirmativa, levei-a até ao lugar aonde  me esperava.  Abrindo-a pediu-me que olhasse com cuidado seu conteúdo. Lá estavam: um vestido longo, de uma lã fininha azul-marinho, sua "opa" vermelha  de Irmã do Santíssimo, uma fita vermelha com medalha e cruz, uma camisão de cambraia branca decotada, sem mangas, com bordados e  rendas, um par de sapatilhas azul marinho e uma almofada de matelassê, um lado cor-de-rosa e outro azul da  cor do céu, com arremates de renda. Ao perguntar-lhe o significado daquelas peças, explicou-me:

- Minha neta, este é o vestuário que preparei para usar quando  morrer.

- Vovó, a senhora está tão bem. Por que está se preocupando com sua morte?

- Não é preocupação, é cuidado. Eu pedi para que viesses aqui para te fazer um pedido. Quando eu morrer, e não demora muito, quero vestir o que tiraste da caixa de chapéu. E te peço mais um favor: encontrarás na primeira prateleira do meu guarda-roupa uma caixinha com dinheiro. Compra, sem fazer economias, muitas rosas e põe em meu caixão. Põe também, minha neta, bastante perfume em mim. Quero partir desta vida como vivi, perfumada, limpa, bonita.

 Engolindo em seco, perguntei:

- E esta almofada vovó?

- Bem, esta almofada tem uma história. É pena que Chico não esteja aqui para ouvi-la, ele gosta muito de minhas histórias. Pois bem, morreu um velho amigo meu. Aliás, minha neta, acho que sou a última do meu tempo. Esse meu amigo não tinha filhas morando aqui em Juazeiro. Quando me avisaram de sua morte, apressei-me em ir vê-lo porque sabia que sua família era meio desorganizada. Lá encontrei meu amigo num caixão muito pobre e debaixo de sua cabeça uma rede suja, enrolada. Uma lástima, minha neta, uma lástima. Quando perguntei o porquê daquela rede suja, uma nora respondeu-me enraivecida que o sogro falecera à noite e que sua boca ficara muito aberta. Pegaram a rede e a colocaram debaixo de sua cabeça para que a boca  fechasse mais, e ainda amarraram a cabeça do coitado com um lençol sujo. Uma coisa horripilante. Então, para não ter perigo que isso aconteça comigo, mandei confeccionar esta linda almofada. Prometa-me que a colocaras debaixo de minha cabeça.

- Prometo tudo vovó. Mas explique-me mais uma coisa: por que a senhora escolheu duas cores: rosa e azul?

- Ia me esquecendo deste detalhe: o rosa é a vida da terra, o azul é a do céu para onde eu irei. Ponha o lado rosa para baixo e o azul para cima. Minha vida na terra terá terminado. Minha vida no céu começará.

Percebendo-me emudecida , vovó informou-me que seu médico a avisara que se excedera nos laxantes e em outros remédios e que seu coração crescera e que ela poderia falecer a qualquer instante. “Meu motor já não bombeia bem meu sangue.”

Passados alguns meses, meu primo Danilo bateu em nossa porta, pela madrugada, nos avisando que vovó falecera. Em seu carro fomos à Barbalha e conseguimos comprar muitas rosas, tal qual ela recomendara.





Demorei-me  na compra das rosas por isso quando cheguei à casa de minha avó, Francisca e minhas primas  já haviam arrumado tudo como ela queria, inclusive pondo a almofadinha sob sua cabeça. Vi que o lado cor-de-rosa  estava para cima. Pedi a Francisca que virasse a mesma para que a cor azul tocasse a cabeça da minha avó. Olhando-me sem entender o porquê  daquela minha insistência, fez como lhe pedi. Abri, então, seu armário e no lugar dos perfumes, vidros dos mais variados aromas encontrei, bem como pó de arroz, talco, colônias, batons, rouges, sabonetes. Seu filho, tio Jossel, oficial da Marinha Mercante do Brasil, nunca deixava faltar à mãe, aquelas “preciosidades” francesas. Tal qual me ordenou, tomei o perfume do qual ela mais gostava e deitei-o, todo, não só nela, mas também nas pessoas amigas que a velavam.

À Bárbara Maciel Landim, vovó Neném, mãe Neném, minha admiração e gratidão pela pessoa generosa, simples, sábia, linda que deixou profundas marcas de amor em nossas vidas.

Aide Luna Parente



Na festa de nosso casamento, minhas queridinhas.
 As avós> Bárbara Maciel Landim e Ângela de Luna Alencar.
 23 de setembro de 1964
Bárbara Maciel Landim,(vovó Neném) com José Marcondes
 no braço e a neta, Aide. Campo de Aviação, Crato- Ce.  







"Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta, De sol quando acorda. De flor quando ri. Ao lado delas, a gente se sente no balanço de uma rede que dança gostoso numa tarde grande, sem relógio e sem agenda. Ao lado delas, a gente se sente comendo pipoca na praça. Lambuzando o queixo de sorvete . Melando os dedos com algodão doce da cor mais doce que tem pra escolher. O tempo é outro. E a vida fica com a cara que ela tem de verdade, mas que a gente desaprende a ver.

Tem gente que tem cheiro de colo de Deus. De banho de mar quando a água é quente e o céu é azul.  Ao lado delas, a gente se sente chegando em casa e trocando o salto pelos chinelo. Sonhando a maior tolice do  mundo com o gozo de quem não liga pra isso. Ao lado delas, pode ser abril, mas parece manhã de Natal em que a gente acordava e encontrava o presente de Papai Noel.


Tem gente que tem cheiro das estrelas que Deus acendeu no céu e daquelas que conseguimos acender na Terra. Ao lado delas, a gente não acha que o amor é possível, a gente tem certeza. Ao lado delas, a gente se sente visitando um lugar de alegria. Recebendo um buquê de carinhos. Abraçando um filhote de urso panda. Tocando com os olhos da paz. Ao lado delas, saboreamos a delícia do toque suave  que sua presença sopra no nosso coração.


Tem gente que tem cheiro de cafuné sem pressa. Do brinquedo que a gente não largava. Do acalanto que o silêncio canta. De passeios no jardim. Ao lado delas, a gente percebe que a sensualidade é um perfume que vem de dentro e que a atração que realmente nos move não passa só pelo corpo. Corre em outras veias. Pulsa em outro lugar. Ao lado delas, a gente lembra que no instante em que rimos Deus está dançando conosco de rostinho colado. A gente ri grande que nem menino arteiro.


Costumo dizer que algumas almas são perfumadas, porque acredito que os sentimentos também têm cheiro e tocam todas as coisas com os seus dedos de energia.


Minha avó era assim. Ela perfumava muitas vidas com sua luz e suas cores. A minha, foi uma delas. E o perfume era tão gostoso, tão branco, tão delicado, que ela mudou de frasco, mas ele continua vivo no coração de tudo o que ela amou, E tudo que eu amar vai encontrar, de alguma forma, os vestígios desse perfume de Deus, que, numa temporada, se vestiu de Edith, para me falar de amor. Como é bom ter alma perfumada em nossas vidas!


Jesus, que perfume maravilhoso era o da minha mãe.


Deus que a tenha bem pertinho D'ele.




Carlos Drummond de Andrade
 

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