domingo, 10 de fevereiro de 2013





              18. Príncipe

                                      

Envolvidos em colcha de retalho, os Landim Luna adormeciam
embalados pela excelente música do sax do Mestre Chico
                              
Acostumamo-nos, em nossa casa, a dormir embalados pelo som harmonioso do sax do mestre Chico, nosso amigo e quase vizinho. 
Além desse instrumento, o mestre tocava muito bem: clarinete, flauta, corneta e trompete.  Em algumas noites, fomos agraciados com shows de cavaquinho, violão e pandeiro realizados em sua casa por amigos seus. A música começava mais ou menos as dezenove horas e terminava por volta das vinte e duas.
Com ele os Landim Luna  aprenderam  a escutar música. Conheciam de cor, seu repertório musical, e esperavam ansiosos pelo Blue Moon, Moon Light Serenate, Over the Raimbow, Never can say goodby,  Round Midnight e outras  mais.

Acostumei-me, pouco a pouco a ouvir música deitada, no escuro, e de olhos fechados. Tão atenta  ficava que, durante o dia no trabalho, quando punha algum disco  a tocar não podia ,como não posso ainda hoje, fazer outra coisa a não ser escutar a música se a mesma for daquelas que me tocam a alma. Quando comprei meu primeiro carro, solicitei que instalassem no mesmo um aparelho de som. Um mês depois nova solicitação fui obrigada a fazer: que o retirassem. Nunca consegui dirigir e ouvir música, os mesmo tempo.



Cada membro do primeiro time tinha selecionado em si, suas músicas   clássicas, modinhas, boleros, tangos, valsas, blues, jazz e depois, MPB. Nunca nenhum quis desvendar os segredos do outro. Para nós, bem como para nossos pais, música é algo de muito sagrado que só interessa a pessoa que com ela se identifica.
                                               

                                    


Além da música do mestre Chico, outro nosso vizinho, “vizinho dos quintais”, como carinhosamente o chamávamos, nos presenteava com sons, Tijubina, o marceneiro. Martelava a madeira construindo caixões onde barbalhenses dormiriam seu último sono.



As sonoras marteladas noturnas que varavam as madrugadas anunciando que alguém falecera, longe de nos perturbar ou assustar, ajudou-nos a ver a morte como acontecimento natural:  vive-se e morre-se. Daí nenhum de nós, filhos e filhas de Jesus e Iaci ter pavor à morte.

Dos demais vizinhos recebemos amizade, carinho e apreço: “são ur minino e ar minina de seu Dijesus e de Donhaci. Como são bonitim! Deus guarde eles”, assim falavam quando nos viam.

Papai, ao comprar nossa casa foi adquirindo “pedaços de chão” que a ela adicionava. Tornou-se uma casa comprida com quintais. No primeiro, que chamávamos de terraço, duas trepadeiras sempre floridas alegravam e tornavam  o ambiente fresco e  acolhedor: uma bougainville de flores vermelhas escuras e uma roseira trepadeira de cachos cheios de pequenas e perfumadas rosas.
                                                   
Para concretização do sonho de nossos pais, um grande portão em nossa casa  abrindo-se para a rua “da encanação”, a Senador Alencar, e assim podermos banhar nossos cavalos, tê-los à tarde em nosso quintal, estava bem próximo de concretizar-se. Apenas um pequeno quarto de poucos metros, retava a ser comprado.

Papai acreditava que o dono do mesmo, por não morar em Barbalha e pela situação "apertada" em que vivia, o venderia tão logo com o mesmo, o negociasse.  Tal não se deu porque o tal proprietário, baixinho, entroncadinho, petulante, arrogante, desmancha prazer, achou que seu Dijesus, sonhava em demasia: ter  seu cavalos, banha-los todos os dias e escová-los, tendo os filhos em sua companhia. “É demais, é muita petulância, que se danem ele, os filhotinhos  e os cavalos. O quartinho sendo meu, nele só eu posso mandar. Vender, não vendo, dar, não dou, trocar, pra quê? Fico eu aqui onde gosto e mando. De cavalos, o mato é o lugar. Que mania! Que ele se dane. Dane mesmo. Besteira dele se danar Sem a galinha ter, contou com o ovo. Vai endoidar? Que endoideça. No hospício é seu lugar. Aonde já se viu como gente, cavalos tratar? Não vendo, não dou e não troco. É um troço. Mas meu é. E duvido, que ninguém, nem o tenente, nem muita gente, me tira daqui. Vai te lascar seu Boa Fama. Vai te virar e me deixa no meu lugar. Cavalo é pra se montar, não pra se adular.” 

E por falta de quase três metros apenas, não nos foi possível nossos amados cavalos ter em nossa casa conosco, em nosso já preparado quintal.
                                                                              
Percebendo ser melhor  esquecer o projeto, papai construiu em parte  do terreno de nosso quintal, um quarto para passar roupa, uma área coberta para o feitio do sabão e dos doces e mais outro quarto onde se guardava todo tipo de papel comprado, "à grosso", em Juazeiro do Norte. Posteriormente, mamãe contratou o professos José Lima, de Juazeiro, para nos ensinar a arte da papelaria e instalou no referido espaço uma máquina cortadora, e uma prensa. De nossas mãos brotaram lindas artes: nossos cadernos de capas duras, personalizados, com desenhos variados feitos por nós. Daí também a mania que tenho por caderno de capa dura.

Papai sempre gostou de animais. Criar vacas era para ele o maior dos divertimentos. Terminado o horário comercial, nos pegava em casa e juntos visitávamos o curral. Cada animal tinha uma família a qual conhecíamos muito bem: Princesa, Princesinha, Princesita, Condessa, Condessinha, Condecita... E assim toda a “corte” desfilava diante de nós.


Como todo bom criador que se presa, Jesus Luna marcava seu gado com um ferro, uma marca sua registrada em cartório. Enquanto os demais criadores de nossa terra, comumente usavam letras, traços, quadrados com pernas várias, triângulos com adendos, seu Jesus, como sempre, fugiu à regra. Consultando-se, descobriu que de tudo no universo, o Criador Divino, excluindo a humanidade a quem doara a divindade, esmerara-se à castanha e o caju criar. Então, não ousando a romã usar por anunciar de sua família a unção, por precaução, registrou para marca sua o exótico caju com sua castanha, que com suas manhas de fruta nordestina, qual camaleão, se veste de cores fortes, do amarelo ao  escarlate. Sua arte, não enfearia, longe disso, embelezaria tudo o que de seu possuía, em se tratando de objetos, bem como de animais irracionais.



                                                           
De nosso  gado, o grande e belo touro Zebu, o Príncipe, era nosso maior orgulho. Um animal lindo, nobre, valente. Carinhoso conosco. Os meninos, Aécio e Aristênio, passavam por baixo dele. Ele urrava e depois, com o focinho, empurrava seus bumbuns. Baixava a cabeça e um deles se deitava entre seus chifres e pedia: “vamos Príncipe, vamos passear” e riam-se alegremente da brincadeira. 

Quando, cedo da manhã, chegávamos ao curral com nossas canequinhas para o “leite mungido”, Príncipe encontrava um meio de por a cabeça para fora. 
                                                             
Floripa: Lúcia providenciando  leite mugido para sua filha Maria.

Queria afagos, carinhos. Era nosso amigo. Nosso herói. Para nós, o mais belo touro de Barbalha. Por recomendação de nosso pai, não conversávamos sobre esse assunto com pessoas "de fora". Exortava-nos   dizendo: “meus filhos, nosso gado é muito bom. Nosso touro é um dos melhores desta região. Nós sabemos disso, e basta. Há pessoas que se magoam com a felicidade e o viver bem de outras. Sabemos quem somos e como vivemos. Fiquemos silenciosos e vivamos a vida sossegados.



Havia um acerto entre os donos de gado com relação ao horário de levá-lo à beber no olho d’água. Nenhum criador podia usar a hora pertencente a outro. Se o gado atrasasse, o dono ou encarregado esperasse para levá-lo à bebida, após as seis  da noite.

Um dia, depois das treze horas, quando nosso gado bebia, chegou o do Doutor Lyrio Callou. A seu vaqueiro novato, ou  esqueceram-se de repassar-lhe a hora adequada à bebida ao gado que cuidava, ou simplesmente, o dito cujo pensara que podia usar e abusar do olho d’água. O touro do Dr lyrio começou a cheirar nossas vacas. Príncipe não gostou daqueles "apresentamentos". Deu-lhe uma leve estocada no flanco. O bicho não se rendeu. Continuou mexendo com as vacas de seu Jesus Luna. Príncipe deu-lhe uma chifrada mais forte. Fim da paz.
                                           
Quando o vaqueiro de Dr Lyrio se deu conta da situação gritou: “Arreda minha gente. Vai tê uma briga de touro. Corre meninada. Deixe os pote muierada. A coisa vai sê braba. Os touro vai brigá".

A luta começou bem no olho d’ água, abaixo da ponte que fica acima do rio Salamanca.



Com a fúria de tufões, subiram a ladeira entre chifradas e chegaram à rua da Pedra, continuação da Pinto Madeira. Desceram-na. Próximo à pensão de seu João Guida, separaram-se por cerca de cem metros e, quais foguetes, bateram um no outro, testa contra testa, num estalido horrendo. Nenhum dos dois se rendeu ou caiu. A luta continuou mais acirrada.



A esta altura toda Barbalha acompanhava a cena sem nada poder fazer. Alguns homens  armaram-se de forquilhas grossas e tentaram sustar a "briga". Fungando, urrando e escavando, os dois touros os puseram em fuga. 

Avisaram a Dr Lyrio, no consultório, sobre o ocorrido. Este, deixando os clientes, correu apressado tentando encontrar um meio de acalmar e separar os touros. Nós, como as demais pessoas, estarrecidos ante tanta força. Dois gigantes enfrentavam-se. Venceria o melhor. Os dois não se acalmariam antes que um vencesse o outro. A luta continuou pelas ruas e praças de Barbalha. As casas com suas portas bem fechadas testemunhavam o incomum combate. Nenhum dos dois se rendia. 


Formaram-se partidos. Revoltadas, nós crianças que privávamos da convivência do pacífico  Príncipe, não entendíamos como alguém podia divertir-se ante tão dantesco espetáculo. Nervoso, Dr Lyrio perguntou a meu pai de onde viera tão forte e belo animal. “Eu o ganhei quando ainda era bezerro, de um amigo pernambucano. “É um PO, Jesus?” “Para  mim é, Lyrio. É o animal mais querido tanto por mim quanto por minha família. Por que teu rapaz foi tão descuidado levando teu gado à beber na hora marcada para o meu? Não sabia que dois touros não podem ficar juntos com gados diferentes?” “Terá sido o meu rapaz que se adiantou, ou o teu que se atrasou?” “Sabe, Lyrio, é tão grande a minha dor que não há mais nenhum lugar em meu ser que caiba esta tua descabida desconfiança. Pergunta a quem estava lá onde começou a briga. Só assim saberás a verdade. De mim, nem mais uma palavra ouvirás.”

Os touros a esta altura lutavam no largo da Igreja do Rosário. Os alunos do Grupo Escolar Martiniano de Alencar, correram de suas salas e ficaram “curiando” a briga que se prolongou até depois das cinco horas da tarde. Na rua do Fogo, horrorizados, os moradores viram quando, numa chifrada seguida de empurrões, Príncipe quebrou uma das patas dianteira do valentão, que caiu por terra. Findara a briga. Os “partidários” do Príncipe o aclamavam.





Venci," oxente".Sou o PRÍNCIPE dos L. Luna

Papai  comunicou-nos que nosso touro estava cansadíssimo, ferido e que o levaria para descansar na vazante. Não podíamos permanecer em casa, longe do Príncipe. Papai entendeu nossa dor, nossa angustia. Foi  à sapataria e voltou com lanternas à pilha para nós. Com ele fomos ao encontro do Príncipe. Pensávamos encontrá-lo caído, cansado. Ele sentiu nosso cheiro. Pôs-se de pé e,vagarosamente, achegou-se a nós. Choramos vendo-lhes as escoriações. Baixando a cabeça e urrando baixinho, pediu-nos carinho. Foi o que fizemos. Deitou-se aos poucos. Estava muito cansado. Tendo recebido permissão de papai, demos-lhe água, depois molhamos aos poucos sua pele. Por fim, nos sentamos no chão e pusemos sua cabeça em nosso colo. Permanecemos um bom tempo assim, silenciosos, as lágrimas escorrendo.

A verdade dos fatos apareceu. O vaqueiro de Dr Lyrio não levara em conta a recomendação de dar bebida aos animais na hora aprazada. Entretanto, mesmo sabedores da verdade, partidários do touro de Doutor Lyrio queriam que papai lhe pagasse o touro sacrificado. No coração de nosso pai, uma ferida a mais. Pessoas há que se acostumam a dois pesos e duas  medidas sempre usar. Aquele descuido do empregado do doutor pôs em risco a vida de uma cidade. Não foi apenas um "pequeno susto" como alegaram.

Príncipe  recuperou-se totalmente. Muitos coronéis sonharam tê-lo em seus currais. Nosso Príncipe foi só nosso, e de ninguém mais.

Com relação ao amor à terra e a animais, os Landim Luna continuaram a cultivá-lo. Tanto no sítio Buriti no Ceará quanto no Luna em  Floripa, cavalos, vacas, touros, cabras, carneiros, coelhos, perus, galinhas, patos e outros bichos mais, foram, e continuam sendo criados. 
                                                              
Aristênio no sítio Luna em Florianópolis

  
                                                                                 
  Maria Iaci, a neta mais nova de Jesus  e de Maria Iaci, uma L.L da "gema".
 
                                                                                         
Também canta e encanta quem dela se aproxima. É o "xodó da família.
                           






                                   

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