domingo, 10 de fevereiro de 2013





                3. Os Landim Luna e a primeira filha
     



Seleciono da colcha Landim Luna, retalhos para vocês.


Eu, Aide, a segunda Landim Luna, conheci Jesus e Maria Iaci tão logo me dei conta da vida. Orgulhava-me muito deles, especialmente de meu pai. Entre nós sempre houve algo que transcende o entendimento, ao amor entre pai e filha. Foi meu confidente, meu amigo, meu guia. Tiranizou-me muitas vezes. Admirou-se e orgulhou-se de mim, vezes sem conta. Entendiamo-nos sem palavras, pelos olhares e gestos. Brigamos inúmeras vezes. Em todas, ele se rendeu. Envergonhei-me dele e o disse. Ele engolindo os desaforos, ria-se para não chorar. Dele sinto uma saudade imensa. Dele herdei muitas coisas, entre elas, o zelo pelas pessoas que me são caras.

Com relação a minha mãe, eu a respeitava, temia e a admirava. Não havia nenhuma cumplicidade entre nós. Por antever fatos, ela me preparou muito bem, para receber seu legado: os filhos.

Desde cedo, aos meus cinco anos, ela me enviava á Juazeiro com uma lista de compras a ser entregue a titia Nair e uma bolsinha com dinheiro. Aos dez, me entregou uma lista bem comprida. A mim, me cabia escolher e comprar tecidos para as roupas dos meninos  Aécio e Aristênio, meus irmãos, vestidos para  minha irmã Aride e para mim, bem como para os das moças que trabalhavam em nossa casa. Disse-me, na ocasião, dedo em riste, “nada de trazer amostras de tecidos. Compre o que você achar conveniente. Seja cuidadosa. É para vestirem na festa de Santo Antônio. Nada de extravagâncias, nada de miséria, de poupar tostões.” E lá estava eu nas lojas de tecido:  Casa Nova Aurora, e Casa Sampaio; nos lugares de venda de aviamentos, buscando cumprir a missão a mim outorgada.


Na Casa Nova Aurora, os balconistas me recebiam encantados e perguntavam-se: “Como pode esta menina escolher e comprar tecidos para vestir a casa de dona Iaci?” Lembro-me de Edeltro convidando-me a passar para o lado de dentro do balcão, e  oferecendo-me um banquinho para que eu pudesse, de pé sobre o mesmo, passar minhas mãos sobre os tecidos e escolher aqueles que mais se me afigurassem próprios a seu fim.


Nunca comprei nada que não agradasse a minha mãe. Ela, astutamente, me ensinava a ter olhos de ver. A aprender, tocando, avaliar a qualidade do tecido.



Uma semana antes de sua partida para a eternidade, nos encontramos. Ela fragilizada encontrou em mim, mocinha de dezessete anos, o ombro amigo, a confidente, a filha amada. Papai aprontara-lhe uma grande e vergonhosa traição. Eu não sabia. Ela também não ma contou. Pediu-me apenas que, naquele domingo, não regressasse à Crato, como pretendia. Respondi-lhe que não podia retardar minha volta. Havia trabalhos e provas  esperando-me.  Indagou-me: “ E se eu fizer uma cartinha relatando que você teve que faltar as aulas por motivo de saúde?” Expliquei-lhe que nem mesmo assim. Eu me responsabilizara por apresentar um trabalho realizado em grupo. Não tinha como me comunicar com as colegas. Ela aquiesceu. Fez-me prometer que no próximo fim de semana, estaria com ela. Estranhando seu comportamento, perguntei-lhe se estava com algum problema. Afirmou-me que estava bem. Queria apenas conversar algumas coisas comigo. Retornei á Crato. Aquele foi nosso primeiro e último encontro. Reencontrei-a adormecida. Dormia o sono eterno.

Por que eu e ela não nos entendíamos? A pergunta foi respondida muitos anos depois. Através de várias orações de cura interior, encontrei-me com a causa: rejeição. Eu fora rejeitada por ela, em seu útero. Perguntei a tia Silvinha se acompanhara mamãe ao me dar á luz. Respondeu-me que sim. Disse-me que travara com a mesma uma imensa luta. Com dores de parto, recusava-se a parir. Segurando-se em um dos armadores de seu quarto, tudo fazia para que eu não nascesse. E quando nasci, ao lhe ser apresentada, virou o rosto. Não me olhou. Hoje diriam: “depressão pós-parto.” Eu a compreendi. Casara-se aos 30 de novembro de 1935. Aécio, o filho do seu amor, o esperado, nasceu aos 29 de novembro de 1936. Um ano completo, fechado, lindo. Então, poucos meses depois, engravidou. Uma lástima. Como não amamentar o filho amado? Quem se atrevera a lhe tirar do mundo encantado aonde vivia? Eu, a menina intrometida, eu, a menina não programada, não esperada. O casal mal se curtira. A família: pai, mãe e filho completada. Agora não. Não é hora. Não quero. Mas eu teimei. Deus me sustentou com Suas Mãos, e eu cheguei para ficar. Parece uma história triste. Não é. É uma história de combates, de vitórias. O Pai  preparava-me para trabalhar com Seu povo sofrido, oprimido, incompreendido. E somente quem sofre, sabe o que é a dor, o desconsolo, o desencanto de sentir-se um alguém “a mais”, deslocado, rejeitado.
                                  Aide, janeiro/1939- Barbalha-Ce

Mamãe fazia tudo para disfarçar aquela falta do primeiro contato, do primeiro olhar, do sentir o cheiro, tão indispensável a uma relação aberta, feliz, plena, entre filha e mãe. Aos demais filhos desculpava. Arranjava um meio para minimizar-lhes as faltas, as fragilidades. Com relação a mim, não. Nada de fraquezas. Muitas exigências. 
                                                  
Aide, 1944
Nunca me cobrou, sem haver me proporcionado meios maravilhosos de crescimento.  Sua filha tinha de tudo. Do bom e do melhor. Professores particulares, livros, revistas, jogos, tudo... Por que não cobrar? Errou? Creio que não. Ela nunca se deu conta.  Antenada, percebera que com aquela menina, nada de moleza. Só dureza. Só cobranças. E agradeço-lhe por isso.  
Aide,1946, Barbalha-Ce.
Agradeço-lhe por haver me forjado tão maravilhosamente. Que Deus a tenha. A Deus, através dela, agradeço pelas cobranças, pelas exigências. Ela percebera em mim, aquilo que um dia eu seria: uma pessoa buscando em Deus, pelos Carismas, no Paráclito, o Consolador, aliviar os sofrimentos e as dores dos irmãos e irmãs encontrados pelo caminho.

Aide,1945-Barbalha-Ce

Quando, após oração e aconselhamento, vejo alguém que antes chorara, tentara contra a própria vida, dançar, cantar, proclamar as Maravilhas de Deus em sua vida, percebo a presença indispensável de minha sábia mãe exigindo-me compromisso, ação, lealdade, bondade, despojamento. Como não exultar de alegria? Como não celebrar com minha vida, as vidas resgatadas?
                                                      

Antes

                                             
Depois
E foi assim que eu vivi com ela. Papai percebendo o clima  trouxe-me a si. Foi maravilhoso. Que pai eu tive! Quando vinha, menina moça, de Crato onde cursava o Normal e Contabilidade, à Barbalha nos fins de semana, encomendava um jantar a dois: eu e ele. Saiamos de braços entrelaçados. Ele alegre, eu feliz. Ele expectante, eu pronta a lhe fornecer informações. Não me interrogava. Falava-me sobre a vida. Punha-me a par dos acontecimentos mundiais. Sabia que eu sentia falta daquelas conversas. Prodigamente me punha a par de tudo. Olhava-me com muito amor e esperava. A “torneira” abria-se. Meu coração derramava-se no coração daquele pai atento, amigo, galante... daquele pai que orgulhosamente, carregava na carteira bem junto do seu coração, meu boletim escolar, onde os dez se repetiam.
                                               
Aide Landim Luna, Recife- 1958



Aide no laguinho do Colégio Santo Antônio- Barbalha
Aide na praça Padre Cícero, Juazeiro do Norte- Ce.


Aide L. Luna/ 1957 - Barbalha-Ceará


Aide Landim Luna





                       
Nossa mesa, sempre bem forrada com toalha impecável, era respeitada. Ouvia seus amigos comentando: “É mania de Jesus sair com sua menina. Estão ali parecendo namorados.” Ou “Cuidado! A menina de Jesus está jantando com ele. Nada de piadas. Se ela ouvir algo que a aborreça, ele nunca mais falará conosco. Perderemos um precioso amigo.”

E mamãe, como via o fluir dessa amizade? Com alegria. Esperava-nos. Papai contava-lhe tudo acerca do encontro. Ele ria alegremente da estranheza dos amigos e acrescentava orgulhoso: “Coitados. Não têm uma filha tão bonita, tão boa quanto nós.” Ela então, quase sempre me perguntava se ainda me sentia bem morando em Crato, na casa de tia Zefinha. Tia Zefinha! Minha tia nunca permitiu que eu me sentisse estranha em sua casa. Abriu-me o coração e me acolheu por inteira, dentro dele.

E por que estou escrevendo sobre isso? Simplesmente porque sinto saudades. Porque há alguns dias atrás recebi novamente, plenamente, o AMOR DE DEUS, através do RES, Repouso no Espírito Santo, ministrado pelo santo missionário de Deus, padre Antonello Cadeddu, um dos fundadores da Comunidade Aliança de Misericórdia.                                         

       

Aide e Padre Antonello
 Durante o mesmo, além de  amorisar-me, o Santo Espírito levou-me à morte de minha mãe. Eu ficara enraivecida. Mamãe, muito organizada, todas as noites, findo seu trabalho, antes de dormir, passava uma vassoura por toda a casa. Arrumava tudo cuidadosamente.  “Nunca se sabe o que pode acontecer à noite. Tenhamos cuidado. Arrumemos nossa casa.” No dia em que adormeceu definitivamente neste mundo para acordar na eternidade, preparava a casa para a chegada do bebê gestado em seu ventre há oito meses. A casa totalmente desorganizada. Escadas, tintas, areia, cal, poeira... Ao perceber a cena, chamei meus irmãos e com as ajudantes de nossa casa começamos a varrer as sujeiras. Escadas retiradas. Os pintores estarrecidos. "Terá ela enlouquecido?" Buscaram meu pai. Ele lhes respondeu: “Ela agora é a dona. Façam tudo o que ela mandar.” As moças de nossa casa choravam, e exclamavam: "que doidice!" Engano. Eu queria honrá-la. Queria arrumar a casa que desmoronara, para ver se assim, ela voltava. O povo de Barbalha estranhou aquele gesto. Nunca me incomodei com isso. Queria, ó como queria, que o mundo girasse para trás. Queria voltar àquela noitinha em que nós duas nos encontramos. Uma só vez, mas tão forte, tão nosso, que nem o tempo, nem a morte, o diluiu.



 MEUS PRIMEIROS AMORES


1- Cabecinha de Arroz , Vovô Landim
                  

Pai Landim, vovô Landim (José Batista Landim), sem  sombra   de dúvidas, foi o primeiro e maior amor da minha infância. Eu sua neta querida, a menina sonhada por ele...Neném Landim (Bárbara Maciel Landim), minha avó, percebendo o quanto meu avô procurava realizar todos os meus desejos brincando comigo como se fosse uma criança, justificava o comportamento do marido afirmando que ele amara muitíssimo a primeira filha,  ELCÍDIA, e a perdera quando a mesma  casara-se com Cesídio Arraes. Depois transferiu o amor para mamãe. Agora ele podia  dar-se ao luxo de brincar com a filha da filha amada e mimá-la muito. Eu ouvia aqueles comentários sem me importar ou perturbar. Eram conversas sem importância. Meu CABECINHA DE ARROZ, este sim, este me importava muito. Era meu tesouro.




José Batista Landim/ 1942, Juazeiro-Ce.

Fato inédito naquela família: seu Landim sair a passear com uma menininha de 4 ou 5 anos para ter o prazer de vê-la metendo as mão nos bolsos do seu paletó, sempre branco, certa de neles encontrar seus bombons preferidos. Comprar-lhe sorvetes, picolés e pirulitos. Pô-la para dormir...



Se não fosse a bronca de seu Jesus Luna, eu teria sido criada por meus avós maternos. Papai obrigou minha mãe a me pegar à força, tirando-me dos braços de meu avô e levar-me de volta para nossa casa em Barbalha.



Papai  esperava-me cheio de presentes. Mas, durante muito tempo,   senti-me deslocada em minha própria casa.


Como meu pai percebera que se eu voltasse a Juazeiro, seria traumático, tanto para mim quanto para mamãe e muito mais para vovô, pediu a mamãe para não mais me levar até lá. Assim, a última lembrança que guardo de Pai Landim, é seu olhar magoado pela perda da companhia da neta. Faleceu em 1943 de ataque cardíaco, mais ou menos, uns três meses após mamãe ter me tirado dele.



2- Crica e titia,Vicente Leite e  Nair Maciel          
        Landim



Lembro-me que ainda pequena,  5 a 7 anos mais ou menos, mamãe escrevia um bilhete para titia e uma lista de compras (tecidos e aviamentos) a serem adquiridas em Juazeiro. Colocava o dinheiro e tudo o mais numa bolsinha informava-me que naquele dia eu iria a Juazeiro. Esperava comigo “a sopa”, um veículo feito bonde, mas com pneus e movido à gasolina, que tinha como motorista o Crica (Vicente Leite).


Vicente Leite (Crica) 1942/ Juzeiro- Ce.


A sopa parava no terreno baldio ao lado da nossa casa. Mamãe "entregava-me” aos cuidados do Crica.  Ele ria, colocava um banquinho baixo a seu lado, e lá íamos nós como se não houvesse mais ninguém naquela sopa. Ao chegar à Juazeiro, após a saída dos passageiros, na praça Padre Cícero, pegava-me pela mão ou me carregava no colo e me deixava na esquina do quarteirão (naquele tempo o último da rua São Pedro, perto da Igreja Matriz). Permanecia de pé,sem se mover, esperando que eu entrasse na casa de meus avós.


Penso que nesse meu ir e vir a Juazeiro, titia e Vicente enamoraram-se. Ele durante toda sua vida afirmou para os filhos, ser eu sua filha mais velha, a negona, e que nenhum deles pensasse em tomar meu lugar, “ela é a primeira", afirmava sempre.



Nair Maciel Landim/ 1944,Juazeiro-Ceará

Hoje quando vou à casa das meninas (as filhas de titia), não falo nada sobre o assunto. Entretanto sinto muito a falta dos dois, principalmente depois que meu amado partiu para a casa do Pai. Aliás, desde seu falecimento, afastei-me muito das pessoas queridas. Busco guardar distancia dos lugares onde curtimos as coisas boas que a vida nos ofereceu com tanta fartura. É um limite meu e não luto para livrar-me do mesmo.

“ Quando, no amor se travam batalhas, desperta fica a alma para os embates da vida. E, sabendo ser toda batalha dolorosa, não a considera, mesmo assim, por antecipação, perdida. Só para amar o amor se antecipa. Com grandeza e sobriedade, às indagações de quem ama ele confere sentido”.

“Os que amam renascem. E mesmo os que, por amor, perecem, deixaram atrás de si um traço. Uma presença, que mesmo em sua ausência, tempo algum pode apagar”

Padre Airton Freire – Am(ai)

               

2 comentários:

  1. Que começo impressionante vó! Estou louca para ler suas próximas publicações!

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    1. Estou feliz. Meu objetivo, tudo indica, será atingido: os descendentes dos Landim Luna conhecerão a história de seus antepassados.
      Então você terá a resposta que me fez ontem:" eu sou da família Landim?
      Fico grata por vc ter lido o que postei.

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