domingo, 10 de fevereiro de 2013



                     
            11.  Dona Albertina

                         
                Vogais e consoantes,abelhas e tamarindos,sucessos e derrotas,
 retalhos que os povoavam. 


                                      
Um hábito instalou-se em nossa família: aos pares, os filhos “andariam”. Aécio, um ano mais velho, esperou que eu chegasse aos seis anos para ser alfabetizado. Mamãe, por precaução, não queria nos matricular no Grupo Escolar Martiniano de Alencar, sem que antes tivéssemos nossos primeiros contatos com a leitura e a escrita. Pesquisadora, aberta ao novo, discerniu em comum com papai, que à Dona Albertina, professora de Quinta Entrância, confiaria nossa alfabetização.

> Aide e Aécio, 1943. Barbalha-Ce.



Dona Albertina, filha de uma viúva muito respeitada em Barbalha, Babá, irmã de uma cadeirante, Zizi, e de um irmão sacristão da Igreja Matriz de Santo Antônio em Barbalha, Henrique. Católica praticante fervorosa, mantinha no porte e no agir a segurança, a firmeza, a autoridade, o acolhimento, e fina educação, que a faziam especial. Mantinha sua escola numa sala com piso de tijolos brancos, situada em  um beco à esquerda da Matriz de Santo Antônio, hoje rua dos Padres Salvatorianos, onde iniciava a alfabetização de crianças e ajudava aquelas do primeiro, segundo e terceiro ano primário, a realizarem suas tarefas escolares. Sem barulho ou balbúrdias.

                            
            Rua dos  Padres Salvatorianos à esquerda da Matriz de Santo Antônio





(Século XXI) O antigo beco onde ficava a escola de dona Albertina.


Em companhia de nosso pai, Aécio e eu chagamos à sala de aula de dona Albertina. Pelo caminho, ele nos exortara que ficássemos sempre atentos, juntos e aproveitássemos tudo o que de bom a professora nos ensinasse. Informou-nos já haver entregue à mesma, o material escolar  solicitado para cada um de nós: um tinteiro, uma pena, um mata-borrão, dois lápis grafite com borrachas, um caderno de caligrafia para alfabetizantes,dois cadernos com pautas e muitas folhas, um caderno de desenho, uma régua, uma carta de ABC, uma caixa de lápis de cor e uma tabuada.

Nossas aulas iniciavam-se às treze horas e trinta minutos. O término, às dezessete horas ou antes, dependendo do esforço e da dedicação de cada aluno, com um recreio de trinta minutos.  Em nosso primeiro dia, nos acolheu à porta e nos desejou a paz. Papai conversou um pouco com ela. Depois ficou por ali aproximadamente vinte minutos, observando nossa reação. Sentimo-nos bem desde o primeiro instante que lhe fomos apresentados. Enérgica mas risonha, naquele primeiro dia, nos pôs a par das regras de sua “escola.” A mais repetida: que, por hipótese alguma, atravessássemos as cercas de arames farpados que separavam seu quintal, do da casa do vigário.


Desapercebidos, não entendendo o porquê daquela recomendação insistentemente repetida. Na hora do recreio, matamos a “charada”. Altaneira, bela cheia de frutos lá estava no quintal do padre, uma tamarineira. No tronco e num dos galhos da mesma, um enxame de arapuás. Suspirei pelos tamarindos desde aquela hora . Uma turminha de meninos nos segredou que se lhes déssemos nossas merendas que portávamos em saquinhos de pano pendurados em nossos cintos, nos dariam em troca, os mais azedos-doces frutos da terra. A tentação foi maior do que a prudência. Já no primeiro dia, levamos para os primos e primas da rua Pinto Madeira, nossas sacolas de merenda cheias dos suspirados frutos.

tamarineira
Enxame de arapuás

                                                                 
Uma festa. Os pedidos. As promessas. Saboreávamos cada pedacinho azedo-doce com prazer, sentados à noitinha na sarjeta, suspirando e fazendo “caretas". Os tamarindos do padre vigário, os frutos proibidos, desejados pela garotada de nossa rua, agora presentes, mastigados e engolidos prazerosamente. Subimos em seu conceito. E pouco a pouco, à proporção que nos familiarizávamos com as vogais e consoantes, melhor nos saiamos na arte de surrupiar os frutos da tamarineira.
                                   
tamarindos

O padre, um dia, nos pegou" com a boca na botija". Chamou dona Albertina e  lhe falou do perigo que corríamos: além de nos ferirmos com os arames, poderíamos ser atacados pelas abelhas. Dona Albertina estarrecida, aborrecida, desencantada, envergonhada, arrancou-nos a promessa de que nunca mais pisaríamos no território proibido.

Enquanto isso a turma de primos da Pinto Madeira nos apertava: “ e aí seus molengas, desistiram de nos ‘vender’ o doce-azedo? Como é? Têm medo da batina do padre ou são molengas mesmo?” Uma tentação. Um martírio. “O que fazer, meu irmão?” “ Muito simples, maninha, vista duas anáguas por cima de sua combinação. Eu te ajudo a passar por entre os arames, passo eu em seguida. Tiras uma das tuas anáguas eu a ponho em minha cabeça. A outra, põe tu mesma em ti. Levaremos uma grande sacola e a traremos transbordante. Esses primos tão falantes vão se entupir de tamarindos.” Dito e feito.

Dona Albertina diariamente, por garantia, nos punha em fila depois do recreio. E após lhe mostramos nossas mãos passava a sua por nossas cabeças para sentir se havia nas mesmas algum traço de mel ou de sujeira. Aécio e eu passamos no teste diário, incólumes.   Diariamente, até que a turminha perdeu o interesse, todas as noites, lhe oferecíamos os azedo-doces frutos.

Dona Albertina levava para sua casa nossos cadernos. Com sua bela letra escrevia com grafite, primeiro as letras vogais, depois as consoantes.  Mais tarde palavras, frases, parágrafos. Nós, “um palmo de língua” estirado, cuidadosamente, cobríamos as letras com tinta tirada dos tinteiros. Não nos era permitido sujar as mãos. Quem o fizesse, além de mostrar as mãos desajeitadas e sujas, repetia o exercício tantas vezes quanto necessário, até acertar a quantidade exata da tinta a ser usada.
 .




Foi um ano ou meio ano, não me lembro bem, de alegrias e encontros. Papai, diariamente, nos levava até a escola e nos esperava ansioso na sapataria, onde relatávamos nossos progressos. O fato de chegarmos sem tinta nos dedos ou nas mãos, o deixava orgulhoso. “Meus filhos, dizia aos amigos, puxaram a mãe. Sabem usar as mãos com maestria.”


Quando ingressamos no Grupo Escolar Martiniano de Alencar, em um ano cursamos o primeiro ano do curso primário A,B e C, e já no ano seguinte, 1945, entramos para o segundo. Algo quase inédito, disse a diretora aos nossos pais. À dona Albertina devemos nosso sucesso.

                                                   Irmão
Pessoa ternura
Presença da hora dura
Coração que caminha de frente
Alma que se faz presente
Torrente de compaixão
  Irmão
Pessoa companhia
Lado que divide a tensão
Boca de colorida verdade de todos os tons
Que nos soa como oração
  Irmão
Pessoa possibilidade
Da consentida lealdade
Da cumplicidade sem medida
Da fidelidade assumida
De mãos abraçadas
 Irmão          
Pessoa unidade
Uma energia, uma qualidade
Um senso de responsabilidade
Um peito de honestidade
Um verso de amor uma ajuda na dor
Irmão
Pessoa pedaço
Invisível corrente
Que permanece unida
Caminho, encruzilhada, ninho
Paralela do destino
Eu me agradeço
de te haver cativado.

Luiz A. Gasparetto”“Consertos para uma alma só”



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