sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

32- Histórias do Buriti - Moradores


     

         4. A CAVEIRA
                 A  COBRA
                 DONA MEINHA
                 A QUEDA



... e contando suas histórias esperaram o Domingo de Páscoa.

Naquela noite de sábado da Semana Santa, no sítio Buriti, ao redor da fogueira lembrávamos-nos de outras ocasiões como aquela em que, após orações e jejuns, as pessoas reúnam-se esperando a meia noite para cantar o Aleluia, bendizer a Deus e pedir graças especiais à Mãe do Senhor Ressuscitado.

Compadre Pedro não emitia nenhuma opinião. Olhando para ele percebi que não estavam bem e que se preparava para nos deixar. Estranhando seu comportamento indaguei:
- Alguma coisa o incomoda meu compadre?
- Ora comadre o que haveria de me incomodá? É que quero chegá cedo em casa e embora  a prosa teja boa acho que já me vou. Vambora Maria?

- Acho cedo Pedo, mas se tu já quer ir, o jeito é nois ir tudo de uma vez.

- Mas comadre, combinamos esperar pela meia noite, para celebrarmos a Páscoa e, de acordo com o costume daqui, rezar as alvíssaras e o pedir  graças a Nossa Senhora, a mãe do Ressuscitado.

- Faz tempo comadre que não esperamos pela meia noite. Pêdo aresolveu, faz tempo, rezá e se deitá cedo. Ele fica com medo de acontecê alguma coisa desagradave. E tá certo. Ele teve uma experiência muito forte numa sexta-feira santa e derde então, toma todo o cuidado com o qui diz e cum o qui faz na semana santa.

- Ora Compadre Pedro, por que o senhor não nos conta sua experiência? Será de bom proveito porque hoje as pessoas não querem respeitar os dias santos. Aqui mesmo foi difícil proibir o uso de bebidas alcoólicas. Hoje é sábado e estamos aguardando a hora da Aleluia.

- Pois é Dotô, meu compadre. Sei que a sexta santa já passou mais inda tenho meus cuidado pro que minha experiêça foi grande por demais.

- Agora, meu compadre, já que começou, conte-nos tudo.

- Tou sem força, compadre.

- Então vai tomar comigo um copo de vinho e a força voltará.

 -Mas antes deu falá quero dizê qui sinto muito a farta do pessoá de minha comade e mais ainda de Tetê, Carlim e de Quelzinha.

 - Tetê resolveu com o marido viajar com amigos e Rachel está em São Paulo. Meu pessoal planejou passar a semana santa longe daqui. Assim, estamos nós aqui com nosso povo do Buriti e achando muito bom. O trabalho é menor e podemos descansar mais. E o vinho, meu  compadre, o senhor aceita?

- Tomá vim? É, já passô o impedimento. Hoje é Sábado da Aleluia e num há farta nenhuma em comemorá a vida de Nosso Senhô. Aceito o vim e conto o acontecido.

Após beber o primeiro copo de vinho e já se preparando para o segundo, nosso compadre e administrador contou-nos sua história.

- Bem, eu tava viúvo fazia argum tempo. Já tinha ido na cidade de Jardim conhecê Maria e tava certo de que ajeitaria as coisa pra me casá cum ela.
Mas a vida de um viúvo é muito dismantelada. Todo dinhero qui eu pegava gastava cum   bobage, dava pra fias, e também comecei a gostá de bebê uma pinguinha.
Também, nos Azedo, mais ou menos perto do lugá adonde hoje tá a casa de Pedo Filirmino, morava um sujeito, antigo encarregado do Buriti no tempo do padre Lauro e de seu Otávi Ribero. Ele tinha na casa dele mesa de jogo de baraio e eu, aos pouco, fui gostano de apostá no baraio. Ganhava uma vez, perdia duas. Mais assim mei distrambeiado fui viveno. Quiria construí uma casinha e casá cum Maria. Mais e o dinhero adonde arranjá ? A vida era muito difici. Nois praticamente num tinha patrão. A moage era uma arapuca. Este sítio era bem diferente do de hoje. Num tinha levada do jeito de hoje não. Era umas arrumação de bica de coqueiro e um disperdiço danado d'água. O caba num tinha nem gosto de prantá cana pro que quano fartava a chuva, as bica num dava de conta. Um dirmantelo sem iguá.
Mas deixe eu dizê o qui importa. Numa semana santa os morador do Buriti tudo na pinga, um dirmantelo danado, recebi um dinherim qui o patrão me devia. Guardei o dinherim no bolso todo sastisfeito certo di qui era o começo da casinha qui eu tava pranejano. Então recebi um recado lá dos Azedos qui ia havê jogo na sexta-feira, no sábado e no domingo. Assuntei, assuntei, contei o dinherim e arresovi qui o mió mermo era arriscá.
Na sexta-feira santa, peguei uma cabra grande que eu criava e que tinha dois cabritim famoso, amarrei ela num lugá bom cum pasto e água e fui pra festança.


 Lá tava tudo nos conforme. Paguei o preço do armoço e dixe qui só ficava lá inté as duas da tarde. Mais qui nada! As duas eu tava ganhando um pouquim e fiquei todo animado. E fui jogano. Perdeno, ganhano, e o tempo passano e nois tomando pinga comprano coisa pra comê. E quano mi dei conta di mim, era quase meia noite. Aí eu me alevantei e dixe: ganhano ou perdeno vou simbora. Qui diacho é isso? O tempo passô sem eu vê. Foi um fuzuê danado pra eu não saí, mais eu tava arresolvido.
Desci dos Azedo, a lua tava quilara cuma se fossse dia. Eu comecei a me proguntá: Pêdo, tu tá ficando veio ou doido? Donde já se viu se assentá numa mesa de carteado o dia e a noite? E o dinhero? Ganhou ou perdeu? Eu nem arrespodi a eu mermo. O que eu queria era me afastá daquele lugá enganoso. Cheguei a minha casa e quano tava já quase dromindo me alembrei da cabra. Dei um pulo da rede e fui buscá ela. Ela tava no lugá adonde eu deixei. Entoce me abixei dizendo: pobrezinha, minha amiga eu hoje não me alembrei de tu e tu que tem de dá leite as tuas duas fias. Sou um marvado. Entonce peguei no barbicacho da cabra e quano virei a cabeça dela pra mim, nas minha mão tava uma cavera. Uma cavera cum os buraco nos zoi, os dente de fora se rindo de mim. Dei um pulo pra traz e falei arto: Eu te arrenego bicho imundo. Sai do meu camim, coisa rim. Valei-me a Hostia Santa do Artá, minha Nossa Senhora e meu Padim Ciço. E a cavera que mi oiava se rindo de mim, já não tava lá. Aí, todo se tremeno peguei no barbicacho da cabrinha e ela berrano se alevantô e os burregim também. Aí eu rezei um Pai Nosso e aprometi a Deus Nosso Sínhô qui nunca mais pegaria numa carta de baraio em minha vida e qui arrespeitaria a semana santa cum respeito qui si deve tê as coisa santa.
E foi isso o qui aconteceu.





- Meu compadre, será que não foi a sombra da lua que o senhor viu? O compadre pode ter bebido pinga além da conta.

- Não compadre, não bebi muito não. Eu tava insegerado cum o jogo, tava  doidim pra arranjá um tostãozim a mais  pra fazê uma casinha. Eu num tinha tempo pra nada mais do qui pra jogá.  E cuma podia sê a sombra, meu compadre, si eu peguei na minha mão a disinfeliz da cavera? Ela ria de mim. Não falava mais eu sabia o que ela tava mi dizeno. Não meu cumpade, naquela madrugada a morte tava ali cum eu. E eu intendi direitim o aviso



 No dia seguinte contei o dinherim e ele tava todo. Nem um tostão a mais, nem um tostão a menos. Aí arresolvi tomá vergonha na cara. Trabaiei, trabaiei e menos de um ano depois fui buscá Maria no Jardim. Casemos. Temos duas fias e um fio e nunca nos fartô nada. Eita  muié  sabida é esta qui Deus mi deu! Sabe lê, escrevê, sabe aplicá injeção, fazê queijo.

- É muito educada e já aprendi a fazer doces e bolos com ela, meu compadre. Comadre Maria é sábia. Eu acredito em sua história, meu compadre. Durante todos esses anos que trabalha para nós, nunca ouvi uma mentira saída de sua boca. Nunca ouvi um palavrão. Também nunca vi o senhor, meu compadre com raiva, falando alto, maldizendo-se. Foi preciso acontecer o que aconteceu, para o senhor se tornar o homem que é hoje. E faz muito bem criando sua família temente a Deus.

- Tá ouvindo Maria? Minha cumade  falô do jeitim qui eu sabia qui ela ia falá. Ela entende essas coisas. Pois fiquem todos os que tão aqui sabeno qui Pêdo Francisco, este veio que está agora em pé, passô pelo maió susto qui um home pode passá na vida. Passô pela morte. E só a Hóstia Santa do Artá mi livrô da desinfeliz. Entonce, derna daquele dia eu sou ôto homi. Minha cumade tem razão. Mudei inté meu jeito de falá. Qui Deus protreja todos nós. E qui nois tudo fique sabeno qui nunca si deve farreá na sexta-feira santa. É o dia qui Nosso Senhô Jesus Cristo morreu na cruz pra dá vida a nois. E num custa nada a gente ficá lembrano Dele e pedino pra acreditá qui asdepois de morto na cruz, Ele vortou a vivê só pra protregê nois tudo. Eu sei qui isso e verdade e peço a Deus qui nois tudo daqui acredite.

- Amém.

Comadre Dunda apressou-se em trazer mais um garrafão de vinho perguntando se podia abrir o mesmo. Tendo recebido resposta afirmativa, pediu a Miro que o abrisse enquanto providenciava copos limpos.
Bebericando, olhou para compadre Pedro e falou:

- Ti Pêdo, agora qui o sinhô contou a históra qui nunca conta, conte pra nois a da cobra.

- Oxe, Dunda, e pra qui é qui eu vou contá isso? Já faz tanto tempo...

- Agora ficamos curiosos. Sinta-se à vontade, compadre e nos conte a história da cobra. Mas antes, Dunda, traga o balainho com bolos e o outro com pães e biscoitos.

- Assim é mió. Já tava achano qui nunca nois ia cumê essas coisas boas. Mais conte a históra, ti Pêdo.


- Apois tá. É uma históra qui aconteceu cum eu e qui pode acontecê cum todas as pessoa.
Derna qui eu era um minino, meu pai sempre mi falava das cobra. Naquele tempo cumo as matas era ainda fechada e os capim grande, havia muita cobra por essas banda. Meu pai mi dizia qui  cada cobra tem sua manha, seu veneno, seu jeito de vivê. E mi dizia qui um pobe pode fazê economia em tudo, menos nas bota e nas botina. Num precisa ser daquelas caras mas daquela que vai até as canelas. Ele mi ensinava adonde as cascavé gosta de morá e cuma se livrá delas.



                                                                  cascavel

 Ensinava tudo. Mas o qui ele mais mi dizia é qui há uma cobra qui tem o gênio muito rim e qui gosta de se vingá. E mi dizia bem assim: "meu fio, se argum dia você tivé a má sorte de levá uma botada de uma cobra jararaca, num dexe ela viva. Esmagalhe a cabeça dela. Se você num esmagalhá a cabeça, ela tem força pra se arrecuperá e vai achá você e si vingá. Escute bem, mate a bicha pela cabeça. É de todas as nação, a cobra mais traiçoeira e vingativa qui insiste".
Eu tinha me casado cum Maria. Lucia, nossa primera fia tava cum uma semana de vida. Era cedo e eu mi dispidi delas e fui pra uma rocinha nossa do ôtro lado do rio, perto dos Azedo. Levei minha cabaça cum água, fumo, rapadura, farinha um pedaço de carne, proque quiria ganhá tempo e só vortá pra casa no anoitecê.
Quando tava mais ou menos pelo meio dia, larguei a enxada e fui cumê arguma coisa, bebê água. Eu me encostei numa pedra grande qui tava ali. Comi, bebi e quando ia puxano o chapéu para cobrí os zois e tirá um cochilo, lá tava a bicha: uma cobra  jararaca grande e grossa armando o bote pra eu. Dei um pulo, ela deu o bote mais num  pegô in eu. 


                                                              Jararaca

Dei uma enxadada e acertei bem no meio dela. Pensei cum eu mermo: ‘Pêdo, tu quebrô a bicha no mei. Eita qui mão boa essa tua.’ Aí me assentei, olhei bem a danada. Pra mim, ela tava morta. Peguei umas vareta levantei ela e dipendurei ela num gaio de ave pra levá ela e amosotrá a Maria.
Depois do acontecido cum a cobra, arresolvi vortá pra casa. Eu tinha passado um susto grande. Então olhei bem pra danada. Ela ali pendurada sem nenhum movimento. Tá mortinha da silva, pensei. E fui simbora.

Nós Maria, eu e Lucia, nossa fia, estava em nossa casa. Era assim pela sete horas da noite. Maria pegô Lucia para dá de mamá. Ficou de costas para eu e amamentano a fia. Eu oiando aquela buniteza toda. Oiei pra nossa casinha, nossos terêm, e fiquei chei de alegria. Depois pensei: agora qui temo esta fia vô fazê uma puxadinha  pra ela brincá. Aí comecei a oiá prá coberta da casa avaliando cuma é qui eu ia fazê. E aí tomei um susto. Lá tava andano pra adonde tava minha muié e minha fia, a cobra jararaca. Mais do que dipressa, sem fazê baruio nenhum pra num quebrá o resguardo de Maria, peguei a enxada e dei um bote na mardita. Ela caiu e eu segurano ela cum a enxada, esmaguei a cabeça dela todinha.
Jararaca

Maria nem viu nem ouviu nada.Quando ela acabou de amamentá nossa fia eu falei assim:

- Maria, ai do fio qui se esquece dos conseio do seu pai.

Ela me proguntou proqui eu tava dizendo aquilo. Aí eu contei a ela o acontecido. Ela oiava pra cobra e não acreditava. E me proguntou:

- Num é ôtra cobra, Pêdo?

E eu arrespondi, vira ela e oia a marca da enxada quase dividino ela no meio. Essa coisa ruim vei no meu faro. Ela queria vingança. E quano viu tu e nossa fia achou qui vingança maió era mordê vocês duas. Bem qui meu pai me dixe qui num há nação de cobra mais vingativa e maldosa do qui essa. Aí Maria mi aconseiô assim:

- Pêdo, vá na casa de uma de suas fias ou de um conhecido e traga aqui pra vê essa arrumação. Se amanhã você contá esta históra vão dizê qui é invenção.

Fiz cuma ela me aconseiou. Truxe um meu compade . Ele oiou a bichona  e mi ajudou a tirá o couro dela. Depois qui tiramo o côro ele dixe:

- Bote pra secá e pendure na parede perto dos santo. Quem duvidá de sua palavra é só vim aqui e oiá a marca da enxada e o coro da bichona. Meus parabém, meu compade. Durma em paz . Esta menina vai sê sua alegria e vai cuidá bem de você.

- Compadre Pedro, o senhor ainda guarda o couro da cobra?

- Guardo sim, meu compadre. Tá lá na parede dos santos pra quem quizé vê.
-É muito difícil acreditar-se numa história como esta que acabou de nos contar, meu compadre. Como disse minha mulher, eu nunca ouvi você mentindo. E não é hoje que vou desacreditar no que nos contou. Uma cobra que se guia pelo faro para se vingar de quem a feriu... É demais mesmo, meu compadre.

- É meu compadre. Eu que sou muIé dele, se não tivesse lá e visto a danada da cobra, jamais acreditaria. Eu e Lúcia quase fumo mordida pô uma cobra vingativa. Vá lá em casa, meu compade, e veja com seus zoios o côro da bichona.

- Que horas são?

- Acho que nove e meia da noite.

- Bom, inda demora pra chegá a meia noite. Seu dotô, o senhô inda aguenta uma históra verdadera?

- Aguento sim, Miro. Mas você conta muitas piadas picantes e histórias malucas enquanto trabalha no engenho. Hoje não é dia de piadas. Apenas histórias corretas ou verdadeiras podem ser contadas.

- Então pronto. Tá aqui esse nêgo, Miro, o mió e mais rápido caxeador de rapadura par contá. E é uma históra qui nunca conto pruque é muito séria. Quando eu acabá de contá o causo, quero qui dona Aide me diga se acredita. Posso começá?

- Pode Miro. Mas tenha cuidado para não exagerar. E depois direi se acredito no que você contou.

- Inda não começando, quero dizê a todo mundo qui tá  aquiqui eu sô o mais mió e mais competente caxeadô de rapadura do Cariri. Seu dotô Francisco, esse home qui tá aqui, quando pediu a nois pra ajudá na moagem do amigo dele, primo de dona Aide, que teve as  cana queimada lá em Brabaia, presenciou, várias vez, apostas que peguei cum ôtros caxeador. Ganhei de todo mundo. É vero dotô?




- É verdade sim Miro. Você é também o melhor em embalar rapaduras. É ótimo na fornalha.É um dos mais competentes trabalhadores que temos aqui. Se falasse menos, seria perfeito.


- Mas seu dotô, se eu não falasse e cantasse num ia dá certo. A fornaia é quente e as vez é preciso uma boa gaitada pra  gente esquecê o calô.

- Vamos lá Miro, conte sua história antes que chegue a meia noite.

- Bom vou contá esta históra mudano o nome do lugá e das pessoa. O assunto todo é verdadero e se vocimicês quiser eu até juro por essa luz qui mi alumeia. Mas tenho de mudá os nome das pessoa e do lugá pruque já fui procurado pra testemunhá essa história qui vou contá inté na Igreja. Então escutem.

Eu trabaiava no engenho de rapadura de um coroné do Cariri. As coisa lá era bem diferente das daqui. Muita dureza. Nada de conversa. Os patrão não se sentava com os trabaiadô assim cuma estamo hoje aqui.
Tamém não dava comida aos trabaiadô. Cada muié qui fizesse comida pra seu marido. Os solteiro contratava uma pessoa e ela fazia a comida dos qui num tinha muié. Uma comida inté qui boa.
Eu trabaiava na fornaia fazeno o que sei fazê bem, e ajudano o mestre.






O mestre era meio enfezado e se chamava, seu Mané Anjo. Trabaiava cum nois os calderero, mais um caxeadô e o metedô de fogo. Nois se dava tudo muito bem. Mas as conversa era pouca. Seu Mané Anjo, o mestre, num gostava muito de se rí. Tinha a cara fechada quase o tempo todo. Ele era casado cum uma galega bonita. Baxinha de cabelo quase vremeio e cum umas pintinha no rosto. Era do Juazero do meu Padim e sabia lê e escrevê muito bem. Trazia no pescoço um rosáro de Nossa Senhora e no coração só bondade. Quando ela falava sempre dizia umas coisa bonita cum Deus: Se Deus quisé, se fô da vontade de Deus, Deus lhe pague, Deus é Deus, Deus é tudo. Assim, numa conversa cum ela a gente ouvia o nome de Deus muitas veiz. Aquilo dexava seu Mané Anjo danado. Ele arresmungava e dizia: "Um dia eu vou  mostrá para Meinha quem é o Deus dela". Eu ouvi ele dizeno isso muita veiz e num compreendia cuma qui um home de sorte cuma ele achava rim tê aquela belezura de muié. Mais eu ficava só pensano. E me admirava da paciênça de dona Meinha. 

Ela chegava no engem cum a cumida do marido, qui nem um relógio: na merma hora , todo santo dia. Quano passava pela boca da fornaia o metedô de fogo já sabia qui divia diminui o fogo pro mode qui nois ia armoçá. Seu Mané Anjo pegava a comida qui a muié dele tinha trazido e ficava perto de nois pra nois armoçá tudo junto. Aí nois esperava qui seu Mané Anjo abrisse os panim branquim qui tava cubrino a comida dele e abrisse os prato. Um chêro bom, mais tão bom, saia da comida qui inaté apagava o chero do engem. Nois ficava parado veno seu Mané cumeno aquelas coisa bem perparada.

Dona Meinha sempre fazia comida diferente pro marido. Num arrepetia o dicumê. Todo dia era uma coisa nova. O danado comia tudim e não dava nenhum elogio a ela. Ela, assim qui  chegava,pegava um banquinho qui sempre carregava, se assentava nele. Pegava um balaím cum algodão e um fuso e rodava o fuso o tempo todo sem pará. Era a muié mais trabaiadera qui já conheci. Quano seu Mané terminava de cumê o pratão di cumida, ela desembruiava ôto pratim e dava a ele um pedaço de bolo, ou de cocada, ou de doce. Eita muié maraviosa aquela! E sempre cum um sorriso na boca. O marido arrotava, se levantava. Ela ajuntava as coisa toda e dizia: "Deus seja Louvado. Mané Anjo gostou do meu dicumê. Deus dê a ele saúde, paz e felicidade. A  vocimecês todo a paz de Deus". E ia simbora dexano um chero de jasmim no vento.

Seu Mané tudo fazia pra a muie dele perdê a paciênça. Mas era tempo perdido. Ela vivia na paz e tudo entregava a Deus. Ela nasceu em Juazero e aprendeu cum a madinha a sê boa, a lê e a escrevê, a cozinhá muito bem. Na casa dela ela tinha uns girau prantado cum tudo o qui é verdura e tamem ela prantava uns pés defulô pra tê frô pra botá no santo. Uma lindeza! E a cumida dela era a mió qui já si viu dizê qui teve por aquelas banda.

Eles tinha três fios: duas menina e um menino. As menina galeguinha e o minino morenim cum os oios quilários cor do céu. E os três sabiam lê e escrevê. Dona Meinha ensinava a eles cuma se fosse a mió das professora. Todo o ano comprava livro novo pra eles estudá. Seu Mané num impedia, mais vivia recramando promode de que sua muié num era cuma as ôtras qui briga cum os marido. E inté dizia: "Eu queria tê o gostim de discuti cum Meinha". Mais a natureza dela num dexava. Ela era mansa, bonita, trabaiadera, rezadera, paciente. Eu penso qui ela vivia veno e falano cum os anjo promode qui só assim podia arrespondê as brutice do marido cum sorriso na boca. Dona Meinha era uma muiezinha santa e alegre.

O danado do marido  impricava cum ela e ela parecia qui num via nem ouvia nada. Quanto mais ele impricava mió ela ficava e mais trabaiava. E ajuntava uns tostão promode de que sonhava morá em Juazero pra os fios estudá mió e eles tê um trabaio no comérço.

Na fornaia, muitas vez, nois conversou proguntano a seu Mané a razão de sua impricança. Ele dizia qui tava sem aguentá tanta bondade e teve uma vez qui ele foi pra fêra e comprô peixe salgado, só peixe salgado. Nenhum pedaço de carne ou de osso. Entregô a pexama a muié dizeno qui quiria uma comida muito boa daqueles peixe e ela só disse: " se Deus quizé vai sê a mió comida qui tu já comeu. Si Ele num quizé, você come o qui dé pra fazê". Eu sei disso pruque o mestre dixe a nois  tudo o qui fez de propósito  e dixe mais: "De hoje num passa. Hoje Meinha e eu vamo brigá. Ela vai trazê cumida salgada e rim". Nois tudo ficou  mei curioso e esperemo os acontecido.

Seu Mané se apreparô pra recramá da comida. Quano ela chegô nois tudo fiquemo de zoio e de zouvido . Ela desamarrô a cumida e um chero bom chegô em nossa venta. A muié fez um peixe no caldo de coco cum coento. E tinha conseguido tirá o sal danado do peixe. Seu Mané comeu tudo e inté lambeu os beiço e apreguntô a ela cuma tirara o sal do peixe. Ela disse qui Deus Nosso Senhô tinha botado no coração dela pra ela butá o peixe nun saco, amarrá num gaio de ave e deixá a noite toda na levada. Dimanhazinha o peixe tava sem sal e aí ela fez os  preparo. Seu Mané não conseguiu brigá cum ela. Aí ela dixe a nois qui Deus cuida muito bem das pessoa qui acredita na bondade Dele. Daquele dia em diante, seu Mané ficou mais silencioso e de cara fechada. Nois sem intendê a causa da sua infelicidade. Ai ele dixe qui tava chei de ouví aquela lenga-lenga de Deus tá presente em tudo e tê todo o podê. Fiquei cum pena de dona Meinha. Mais ela num parecia qui sabia da raiva do marido. Todo o dia fazia uma cumida diferente pra ele, trazia uma merenda boa, botava o banquim no chão, se assentava nele, pegava o balaim cum os algodão e fiava com o fuso. Uma buniteza qui só veno. Parecia uma pintura de tão bonito qui era vê aquela muié vremeía, feliz, trabaiando cum o fuso.

Um dia, nois tava acabano de comê, e seu Mané oiou pro lugá  da fornaia adonde ficava o tacho e proguntô:

- Será qui teu Deus, Meinha, inventou o fogo?

- Inventou sim, Mané. Tudo o qui insiste foi criado por Deus e pra nossa felicidade.  Ele criou tudo para nóis e qué a nossa felicidade.

- Escuta, muié, Deus pode mudá as coisa?

- Pode sim. Tudo é Dele. Ele pode mudá o qui quiser, quando quisé.  

- Pode nada, muié. Fogo é fogo e vai sê sempre fogo. Água é água e vai sê sempre água.

- Vai sim Mané. Até quano Deus quisé, home. Deus comanda tudo. Quanto mais a gente acrediá nos podê de Deus, mais a gente é feliz e se sente protregido de tudo.

- Escuta Meinha, tu acha qui tu tá protregida de tudo?

- Tenho certeza, Mané Anjo. E tu não vê home como nossa famia é feliz? Trabaiamo, cuidamo de nossa famia, temo nossa economia, vamo comprá uma casinha e botá um negóço em Juazero, e tudo debaxo da proteção de Deus. Nada temo pra recramá.

- Qué sabê de uma coisa muié? Eu to chei dessa tua históra de Deus. Tudo o qui temo nois trabaiou pra tê. Deus num tem nada cum isso. Trabaio feito um burro. Tu nunca para di trabaiá. Inté quando se senta tá fiando, fazeno cordão pra vendê. E adonde tá Deus? Vamo pará de falá nele de hoje em diante.

- Nunca, Mané, nunca. Deus é o primeiro e mais importante pra mim e pra minha famia. Nunca vou deixá de agradecê por tudo o qui Ele faz por nóis.

- Meinha, é mió tu ficá calada. É mió tu i simbora. Meu sangue tá esquentano. Termino fazeno uma bestera. É mio tu se arretirá.

- Taí, Mané, eu nunca te desobedeci. Fui feliz até o dia de hoje. Mais escutá tu me dizê qui Deus não existe, qui não tem podê pra nada, é pra eu o maió pecado qui uma pessoa pode cometê. Eu não vou deixá meu marido se queimá no inferno.  Eu provo, se tu quisé, qui Deus é o Senhô, Criadô e Cuidadô  de tudo.

- Oxe, muié, qui bicho te mardeu? Num precisa prová nada. Tu fica cum tua certeza e eu cum a minha.

- Não, Mané. Sou tua muié e mãe e de famia. Preciso prová a tu qui tudo o que nois costruiu inté hoje, os fios lindo qui temo, foi Deus qui deu a nois. E tu, agora mesmo, arranje um jeito pra eu te prová isso proque eu não arredo o pé daqui antes de te prová quem é Deus.

- Pois bem, muié teimosa, tu vai de própio gosto mi fazê um viúvo e teus fios de órfão.

- Se fô da vontade de Deus, tudo bem.

- Oia pra fornaia por esse buraco adonde fica o tacho. Veja tá tudo encarnado de quente. É o lugá mais quente do engêm.

- Eu sei Mané.

- Pois bem, se tu tem corage,  desce inté o fundo da fornaia. Desce por tua própa conta e prova qui teu  Deus num vai dexá tu se queimá.

-Eu tô veno e sabeno qui tu tá cum muito medo de eu morrê torrada. Mais num se aveche não. Deus tá comigo e num haverá de deixá uma fio de meu cabelo se queimá. Sou fia Dele e Ele não há de dexá  sua fia se queimá por conta de um marido qui, além de num acreditá Nele, inda acha que Ele num tem podê. Se Deus quisé, eu entro nessa fornaia, saio dela e nem um fio de meu cabelo fica queimado. Vamo lá gente! Tá na hora.

Nois tudo assim se tremeno. Qundo oiei nos zoio de dona Meinha vi qui o causo tava sério. Ela ia descê par dentro da fornaia mermo. Entoce ela me olhou e dixe: "E aí seu Miro, tem uma escada nesse engem"? E eu arrespondi: ‘Tem sim, sinhora, e das boa". Entonce, dixe ela " O qui tá o senhô esperano? Pegue a escada qui eu preciso me desocupá. Tá na hora de estudá cum meus fios. Vá logo home". Eu oiei pro  mestre e ele balançou a cabeça dizeno qui eu fosse buscá a mardita escada. Eu fui.

Quano cheguei cum a escada, dona Meinha tava de pé segurano o balaim com os algodão , o fuso e o tamboretim. Ela oiou pro marido e dixe: "Vamo logo cum isso, Mané Anjo. Eu também to cansada de  dizê a tu, todo o santo dia, qui Deus é Deus, e só ouví resmungo. Hoje vamo tirá as prova. Eu desço na fornaia e fico lá enquanto durá o tempo de uma tachada de rapadura. Quano tu tirá o tacho eu subo de vorta e vou pra minha casa e nunca mais tu vai duvidá dos podê de Deus. Vamo lá! Botem a escada.” Aí eu dixe: "dona Meinha, se nois colocá a  escada ela vai pegá fogo e o patrão vai botá nois tudo pra fora da fazenda dele". E aí ela arrespostou assim: "Se Deus é Deus poderoso e se fô da vontade Dele, nem um pauzim da escada se queima. E tu, Mané, tu já se convenceu de qui Deus tudo pode?" E ele arrespostou a ela: "Ora mais tá muié, se convencê cuma? Tu fica aí falano, falano e acha qui cum tua fala convence nois. Pois fica sabeno qui se tu chegá muito perto da fornaia tu  vai se queimá só com a labareda dela". E dona Meinha arrespostou bem arto: "Vou não Mané, proqui Deus num há de dexá. Ele vai me protregê pra mostrá pra tu e pra esse povo qui trabaia aqui, quem é qui manda no mundo. E vamo ligero,seu Miro, traga a escada."  E aí seu Mané cheio de raiva dixe: " Já qui tu insiste, num vou te negá o gosto. Eu mermo boto a  escada no lugá." E pegou na escada e  botou ela nos beiços do lugá adonde fica o buraco  do tacho na fornaia.   Foi desceno a escada. A escada descia sem se queimá. Quano ela chegou no fundo e parou de descê, dona Meinha, toda sorridente, desceu por ela carregano o banquim e o balaim.

Seu Mané tirou a escada, ponhou o tacho e o mel, e começou a mexê o tacho. Nois tudo horrorizado. Parcia qui o tempo tinha parado... Aí oví o grito dele: "RAPADURA NO PONTO, VAMO TIRÁ O TACHO”.  E nois tiremo o tachada de rapadura, derramemo na gamela, e só entonce oiemos pra dentro da fornaia. E lá tava dona Meinha com o fuso trabaiano. Fiquemo um tempão oiando inté qui ela oiou pra nois e dixe: " Cuma é qui eu subo sem a escada? Já tou atrasada. Tragam a escada." Mais do qui depressa eu botei a escada e ela subiu pra riba.  Quando oliei pra ela, num havia nada queimado nela, nem mermo nos  algodão. Tava tudo cuma se tivesse saído de uma revista: limpo, cheroso e bonito, sem carvão, sem fumaça. Ela tava inda mais limpa e bonita, mais se rindo e feliz do qui antes de descê pra baxo, pras brasa da fornaia. Cuma foi possive isso? Num sei. Sei qui vi do jeitim qui tô contano.  

Seu Mané Anjo num acreditava no qui via. Ele se tremia todim. Dona Meinha não se pabulou nem um minuto. Oiou pra ele e dixe: Mané, Deus é Deus lá no céu e aqui na terra. Tudo isso assucedeu  pra tu nunca duvidá dos podê Dele. Um anjo do Sinhô que tava me fazendo companhia e trazendo um vento frio pra eu, mandou ti dizê qui esse é o derradero lugá qui tu vai trabaiá no alugdo. Nois vamo morá numa boa casinha lá no santo Juazero. Tu vai tê uma venda de santo e eu vou tê uma pensão muito boa. Nossa vai virá professora e nossos fios doutor. E pra vocês tudim, Ele mandou a paz. Inté. E pegano suas coisa foi pra  casa dela.

Seu Mané chorou a noite toda. Durante uma semana num trabaiou. E quando vortou tava mudado. Um sorriso nos beiços, um rosáro no pescoço. E quano dona Meinha chegava ele se derretia pra ela. Ela me deu esse rosáro qui eu trago no pescoço e pediu qui eu nunca me separasse dele e dixe: "Seu Miro, os donos do gado botam chocalho nas vaca nos boi para sabê adonde eles tão. Os fios de Nossa Senhora botamo rosário. Lá no céu o rosário faz um baruim e Nossa Senhora sabe adonde está seu fio. Quano o baruim muda, Nossa Senhora sabe que o fio tá cum precisão. Entonce ela chama os anjo e vem arresolvê a questão. Assim, Seu Miro, fique sempre cum o rosáro no pescoço pra Nossa Senhora tomá conta do sinhô". Aí eu disse qui nunca ia mais vivê sem o rosáro. E foi assim qui aconteceu.”

- E Miro, tu viu tudo isso mermo? Inté os algodão num queimaro. É de verdade essa históra?

- É sim dona Dunda. Eu contei a históra tá quá aconteceu. E digo mais, inda hoje vejo a cara da dona Meinha quando ela saiu da fornaia. Briava muito.

- É uma história difícil de se acreditar. E sabe mais, Miro, de tanto ouvir-te contando lorotas na fornalha, fico me perguntando se não é mais uma das tuas célebres histórias bem contadas.

- Apois, seu dotô Francisco, pode o sinhô ficá assossegado. Eu havera de inventá uma históra meteno Deus pelo mei? É tudo a pura verdade o qui contei hoje. Eu, no começo, quano o causo se assucedeu, contei ele pra umas pessoa e aí um vigaro vei falá cum eu pra eu dá o testemui na Igreja. Arrumei meus troço e nunca mais vortei aquele lugá. Tamém nunca procurei dona Meinha e nem seu Mané. Eu naquele dia vi os podê de Deus. Agora se acreditam no qui eu contei fica pro conta de quem ouviu.

- Eita muié danada de fé essa Meinha! Miro, eu te progunto outra vez: tu oiou bem direitim e num tinha nem um algodãozim queimado?

- Oiei sim, Sá Dunda. Num havia nada queimado. Tava qui nem eu dixe pareceno uma pintura de bonita. Quano eu me alembro, qui nem hoje, fico todo arripiado.

- E comadre Aide o qui a sinhora diz de tudo o que Miro contô?

- Ele é adulto e sabe que com Deus não se brinca. Se ele teve a graça de ver e ouvir o que nos contou, deve saber que não foi por acaso que estava naquele engenho naquele dia. Foi escolhido por Deus para testemunhar Seu Amor, e, Testemunhando, mudar de vida.

- E eu mudei, minha patroa. Mudei muito. Eu era um nêgo danado de safado. Agora acho muita graça mais sei qui Deus vê e acha graça cum eu. Sou um home qui nasceu pra facilitá a vida das pessoa contano causo e ajudano cuma posso. Mais me diga, patroa, a sinhora acredita no qui eu contei?

- Bem, Miro, eu não tenho o direito de desconfiar de você. Estamos aqui reunidos e confiamos uns nos outros. Creio que você pode ter visto o que nos contou ou pode ter inventado tudo. Mas há na Bíblia uma história muito parecida com esta que você nos contou. A história da Fornalha Ardente que está no livro de Daniel.

- Oxe? Na Bríbia? Oxe, eu pensei qui só tinha reza na Bribia. E Cuma é qui é essa históra, minha patroa?   

-  Se vocês quiserem, posso contá-la  a vocês.
- Ora se nois qué? Nois mais do que queremo. Conte logo dona Aide.
- Vou resumir a história. Se alguém não entender o que eu vou falar, pergunte, peça explicação. Perguntem o que quiserem. Está bem assim?
- Mais do qui bom. Pode começá.

Na Babilônia, um reino que existiu num tempo muito antigo e num lugar muito longe daqui, reinava o rei Nabucodonosor. Era muito poderoso e governava muitos povos. Achava-se importante como um Deus.
- Eita nome danado de compricado!  Cuma é mermo  o nome do rei e do lugá dele?
- O nome do rei  é Nabucodonosor . E  a história que eu estou contando aconteceu no lugar chamado Babilônia.
- Acho bom nois dexá as progunta pra asdepois promode di qui a gente perde o fio da midada quano a dona para e arresposta as progunta. Continui, patroa.

- Bem eu dizia que o rei da Babilônia chamado Nabucodonossor era  poderoso e achava que sabia e podia fazer tudo o que quisesse, como se fosse um deus. Por se achar assim poderoso, mandou fazer uma estátua enorme, acho que maior do que aquela do padre Cícero que fica no Horto em Juazeiro. A estátua foi feita do mais puro ouro que existia.  Depois de convidar os juízes, os príncipes e as pessoas mais importantes de seu reino para verem a estátua, o rei escreveu uma lei ordenando que todas as pessoas do reino, quando ouvissem o toque da corneta e de outros instrumentos musicais, deveriam, de joelhos, adorar a estátua. Quem não a adorasse  seria jogado na fornalha ardente para morrer queimado.

Três jovens judeus: Ananias, Misael e Azarias, que moravam na Babilônia, e que eram servos do rei, ao ouvirem a ordem disseram que jamais adorariam uma estátua. Eram homens que amavam e adoravam nosso Deus e disseram que somente a Deus adorariam.

Quando o rei Nabucodonosor soube que os três jovens  recusavam-se a adorar a estátua, encheu-se de raiva, ficou muito mais violento do que já era e ordenou a seus soldados que trouxessem os três jovens à sua presença. Os guardas do rei , imediatamente, prenderam os rapazes e os levaram à presença do rei. Nabucodonosor olhando para eles perguntou-lhes: "É verdade, Ananias, Misael e Azarias que vocês  se recusam  a adorar a estátua de ouro que eu fiz? É verdade que vocês quando ouvem o toque da corneta e dos outros instrumentos musicais, não se ajoelham em adoração diante da estátua como ordenei a todas as pessoas que assim fizessem? Se é verdade, preparem-se porque vou mandar tocar a corneta e vocês, aqui, na minha frente, vão se ajoelhar em adoração a estátua de ouro. Se não adorarem, vão ser jogados dentro da fornalha ardente. Aí quero ver qual é o deus que vai livrar vocês das minhas mãos.

Ananias, Misael e Azarias responderam ao rei assim: não vamos responder a tua pergunta,ó rei. Se queres nos matar, mate. O Deus ao qual servimos e que é o único Deus verdadeiro, pode nos livrar da fornalha ardente  e também das tuas mãos. Mas se ELE não nos livrar, fique sabendo, ó rei, que nós nunca adoraremos teus deuses e tua estátua de ouro.
A raiva do rei Nabucodonosor aumentou mais. Ele gritou alto ordenando que aumentassem sete vezes mais o fogo na fornalha depois, cheio de ódio, mandou que seus soldados mais fortes amarrassem os três  jovens e os jogassem dentro da fornalha. E assim foi feito.

Ora, enquanto o rei pensava que os jovens estavam mortos ou morrendo, na verdade, eles passeavam pelas chamas louvando, bendizendo e agradecendo a Deus que enviara um anjo para os proteger. O anjo além de afastar as chamas, fez no centro da fornalha um lugar onde soprava um vento frio parecido com o vento  do nosso Buriti, no mês de julho.

- Eita! Então qui tava danada de fria lá no meio da  tá fornaia.  Mais explique uma coisa qui não tô entendeno: prumode de que mermo o rei do nome difici quiria qui os moço adorasse um estauta? Era só prumode de qui era de ôro? Ou tem mais coisa qui nois num entendeu?

- Nabucodonosor, o rei, era arrogante. Achava que podia mandar nas pessoas do jeito que quisesse. Achava que tinha o poder de  um deus e por isso  podia obrigar as pessoas a adorarem a quem ele quisesse. Daí o porquê de ter  obrigado as pessoas a adorarem uma estatua . Nós sabemos que só podemos adorar a Deus. A nosso  Deus que criou  o mundo, e tudo o que existe. O Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, e nosso Pai também.  
- Oxe, qui doidera desse rei! Adonde já se viu um home, por mais sabido qui seja, achá qui é Deus. 
- Estás certa, comadre Maria, há gente assim no mundo. Gente que pensa que é Deus.
- É bom qui a gente escute o resto da histora. A senhora tava contando qui Deus mandô um anjo qui soprou um ventinho friim cuma o daqui do Buriti no mes de julho, e aí o qui aconteceu mais asdepois disso?

O rei Nabucodonosor olhando para a fornalha percebeu que havia nela quatro jovens. Admirado perguntou aos soldados: "Não foram três jovens amarrados que vocês jogaram na fornalha"? Os soldados responderam: " Sim, senhor rei, foram três. Aí o rei disse: "Eu vejo quatro jovens passeando no meio do fogo. E um deles é diferente. Parece ser um filho dos deuses. 
Depois de dizer isto, Nabucodonosor aproximando-se da porta da fornalha gritou bem assim: " Ananias, Misael e Azarias, servos do Deus Verdadeiro, do Deus Altíssimo, saiam daí, venham para cá. Os três jovens saíram. Os amigos do rei e os soldados rodearam os jovens e ficaram sem fala ao verem que o fogo não tinha tocado em seus corpos, que nenhum fio de seus cabelos tinha sido queimado e que as roupas que vestiam estavam como novas  e sem cheiro de fumaça.

O rei Nabucodonosor ficou de pé e disse: "Bendito seja o Deus de Ananias, de Misael e de Azarias. ELE enviou seu anjo para salvar estes três jovens porque eles acreditaram em seu poder e não tiveram medo da morte. Quando eu ordenei que eles adorassem um estátua eles disseram que preferiam morrer do que cometer pecado adorando um ídolo e que somente adorariam ao Deus Altíssimo. Pois bem, eu Nabucodonossor  digo que o Deus destes três jovens é o Deus Verdadeiro. De hoje em diante, quem aqui no meu reino falar mal do Deus de Ananias, de Azarias e de Misael, será castigado. Perderá tudo o que possuir, ficará sem casa e sem comida e viverá na imundície; porque não há outro deus capaz de realizar um milagre tão grande como o que nós vimos hoje. 

- Eita esta histora se parece cum a da dona Meinha, num é mermo sá Dunda?

- É Miro. Nar  duas histora, Deus mandou um anjo pra protregê aquelas pessoa qui confiaro Nele. É danado de bom a gente sabê qui Deus cuida de quem confia Nele. Mas aí tá o nó da conversa: quem de nois confia em Deus cuma dona Meinha ou cuma os três rapaz?

- Ouvindo a históra qui tá na Bíblia a gente vê qui o qui Miro contô num é lorota. Dona Meinha queria prová os podê di Deus e provô.  E seu dotô, o qui o sinhô acha dessas  históra de hoje?

- Estou aqui pensando na fé da dona Meinha e na dos jovens. É preciso acreditar de verdade e reconhecer que Deus tudo pode, para agir como agiram. Mesmo sabendo disso, a história da dona Meinha, acontecida no Cariri, não haver se espalhado, deixa muitas dúvidas. E contada por Miro, um exímio contador de casos, mais ainda.

- Entonce, o sinhô num acreditô no qui eu contei.

- Não é bem assim, Miro. Se na Bíblia há uma história quase igual a sua, é sinal de que pode ter sido verdade o que você contou. Se for verdadeira sua história, feliz é você que viu a Graça de Deus acontecendo.    

- E querem sabê duma coisa? Eu tô todo arrepiado. E acho mió qui nós rezemo logo agora.

- Rezaremos a meia noite Miro. Ainda há tempo de você acender a churrasqueira. Falta ainda muito tempo para a meia noite. Então, além do Evangelho da Ressurreição, da oração à Nossa Senhora pedindo as graças, vamos louvar a Deus com uma parte da louvação que os três jovens fizeram na fornalha.

- Eita qui esta noite foi por demais cheia de causos lindos. É bom que no ano que vem a gente repita do mesmo jeito.

- E se me derem licença eu tenho um históra pra contá.

- Oxe, Rapaz Vei, e tu lá sabe contá históra?

- Sei sim, Miro. E esta qui quero contá aconteceu aqui no sítio, faz muito tempo.

- E foi? Entonce que conte  logo promode qui tá já chegano a meia noite.

- Bom eu tava aqui nesta calçada quano seu dotô me dixe: ‘Rapaz Vei vá lá no pasto, pegue meu cavalo e o cavalo loro, pruque eu e minha muié vamo armoça na Santana. E ai eu fui e fiz cuma ele me mandô fazê. Peguei os dois cavalo. Selei o do dotô e levei ele e amarrei na cerca antes do engem, adonde já tava amarrado o cavalo do amigo do dotô e qui ia cum eles pra Santana. 


Dr. Francisco R. Parente(Chico Parente) e seu cavalo, Príncipe.

Vortei e tava selano o lôro quano dona Aide chegô de dento da casa. Ela esperô e quano eu terminei de selá o loro, ela se amontou no cavalo e foi pro lado do engem chamá seu doto. No camim ela se incontrô cum dona Maria de ti Pedo e ficaro conversano. Eu fui na frente e fiquei esperano sentado nas lenha do engem. Quano dona Aide viu o cavalo do dotô amarrado na cerca, foi pra de junto dele. Aí aconteceu uma coisa qui eu num esperava: aquela égua de raça qui o dotô tava criano pra dela ganhá uns cavalim, passô, levada por um cambitero. Principe, o cavalo do dotô, sentindo o chero da égua empinou, deu coices, se soltô da cerca e saiu em disparada atrás da égua. Foi tudo muito ligero. O loro, quano dona Aide se apreparva pra decê dele, deu uma empinada e ela caiu. E caiu todinha embaixo do cavalo. Eu ponhei minhas mão na cabeça e pensei qui tava veno a morte dela. Fiquei sem fala e sem podê saí do lugá. E o qui vi? Vi Ela todinha debaixo do loro cum as duas mão protregeno a cabaça, rolano o corpo e ficano em pé. E eu num acreditava nos meus zoios. Aquela muié ali em pé. Pensei qui era engano. Abri e fechei os zoio e lá tava ela. E aí eu sube qui era um milagre a patroa tá ali intera. E foi isso qui eu queria contá.

 - Oxe, Rapaz Vei, e promode qui tu nunca contõ essa histora?

- E cuma eu ia contá se a patroa num contô nem pra seu doto? Se ela num contô é promode de que num queria qui ninguém subesse.
- Aide, é verdade o que Rapaz Vei acaba de contar?

- Sim é verdade. O cavalo empinou sem que eu soubesse que o faria, e quando me preparava para descer do mesmo. Foi muito rápido. Dei-me conta, de repente, que caíra e que estava debaixo das suas patas  e que o cavalo vizinho continuava empinando. Ali debaixo, percebi como nossa vida é frágil . Bastava que o louro movesse uma só das suas patas, para eu ser atingida. Foram os segundos mais longos de minha vida. Percebi que a morte me rondava. Juntamente com estes sentimento um outro mais forte me invadiu: a certeza de que Jesus, meu Senhor, estava comigo. Orando, protegi minha cabeça com os braços. O louro permanecia parado como se uma força superior o dominasse.  Rolei o corpo para o lado contrário daquele onde estava o outro cavalo e vi-me livre. Pus-me de pé e não senti nenhuma dor. Orei agradecida.

- E por que nunca me contaste esse ocorrido, mulher?

-Para que te preocupar? O momento passara. Eu não queria que ficasses aflito cada vez que eu montasse um cavalo. Além disso, havia o fato de o cambiteiro haver surrupiado a égua para ir a um forró na serra do Araripe. Se eu falasse da minha queda, com certeza, o moço seria despedido por ti. E como nada de mal me acontecera, resolvi calar sobre o assunto.

- Uma progunta, minha cumade: o que a senhora pensou quando tava debaixo do cavalo?
- Eu percebi que a vida da gente se acaba num instante. Ali , debaixo do cavalo, minha vida dependia dos movimentos que ele fizesse. Pensei também em minha filhas e como seria a vida delas se eu morresse. O que mais me impressionou foi  o Louro. Parecia uma estátua: manteve-se quieto, suas patas não saíram do lugar. Quando eu já estava de pé, ele relinchou, empinou e então eu tive a certeza de que Jesus ordenara que ele se mantivesse quieto enquanto eu estivesse caída.

-  Então, cumade, foi um milagre.

- Creio que sim, Dunda. E sou muito grata a Deus por isso.

- E eu achei qui devia  contá essa históra promode  qui eu na hora sube qui tava veno um milagre. Cuma qui um cavalo fica todo parado e os outro tudo relinchano e empinano? Se Deus livrou dona Meinha, também livrou nossa patroa.

- E verdade Rapaz Vei. Eu poderia ter morrido naquele dia. Deus não quis. Se a gente prestar atenção, muitos milagres acontecem em nossas vidas.

- É e você, minha mulher, conseguiu que eu mantivesse os cavalos e a égua e víssemos os potrinhos correndo pelo sítio.

-Tête e quase todos os meus sobrinhos aprenderam a cavalgar aqui em nosso sítio. Nossos netos estão chegando. Precisarão de cavalos para divertirem-se tanto, ou mais que nossos sobrinhos.

- Tá mais do qui certa cumade. Vai sê dinovo aquela festa danada de boa qui Tetê fazia. Pegava o cavalim, Juju, e saia feito um foguete passano pro nossa roça. Meu cumpade pagano os prejuízo. Foi bom a cumade num contá o acontecido. Agora tem cavalo novo pros netos.

-É, eu também já vi muito  milagre aconteceno aqui no Buriti. Derda qui meu cumpade , dotô Francisco, comprô essas terra, as coisa ameioraram por demais. Inté eu, uma nega veia dessa, agora sou propetára. Eu tô cum um sítio bom. Nele tem muita água, tem manguêra, abacatêro, girau cum verdura. É o céu na terra. E foi minha comade Aide qui me deu ele. Quem havera de acreditá qui uma muié casada cum um home chamado Rato, um nêgo gostadô de pinga, ia sê propetara? Quem? Ninguém.

Um dia eu oicei e vi minha cumade falano bem assim cum o dotô: "Parente, num tá certo tu arranjá terra pra a construção das casa própra pra todos os nosso morador  e dexá cumade Dunda sem nada. Pensa bem home, cumade Dunda foi quem mais ajudô nois aqui cuziando cumida pra os trabaiadô, vino serví a nois quano nois aperecisava, e inda percisa. É bom qui nois dê logo a ela um taquim de terra. Aí o dotô dixe bem assim: "Cumade Dunda tá te engabelano pra tu dá arguma terra pra ela". E minha cumade arrespostô na bucha: "E eu sô muié de engambelá, Parente? Eu quero é mermo fazê justiça". E aí o dotô dixe assim: " Vô pensá e asdepois te dô a resposta". Eu qui tava oiçando tudo iscundida, corri pra cuzinha e quano a pratoa chegô perto de eu, eu fiz de conta qui tava pro fora di tudo. Aí ela me apreguntô: " Cumade Dunda, tu se alembra do dia qui nois  falemo do 'suvaquim de terra' qui tu quiria pra fazê neta tua casa?" Aí eu arrespostei: " Oxe, e eu havera de si esquecê? É cum ele qui eu sonho todo santo dia". E aí ela sentou-se numa cadêra  e pediu a eu bem  assim: "Cumade, diga a eu, agora, sem aumentá nem diminuí, cuma qui é esse tá de suvaquim de terra". E aí eu me assentei no chão perto da cumade e  dixe bem assim: "É , cumade, cuma já disse uma veiz, um pedecim piquininim de terra qui é já num dano pra cabê uma casa. Aí dona Aide se riu muito, mais se riu muito mesmo e dixe  a  eu:  "Dundera, tu é mais esperta do qui todo o pessoá aqui do Buriti. Pra qui tu qué uma terra qui num cabe nem uma casa? Vou dizê ao meu marido qui essa terra qui tu qué, num serve  promode de qui num dá nem pra construí uma casa e eu quero dá uma casa  a Dundera. Aí eu tomei um susto danado de grande . Fiquei em pé e dixe: " Sabe , cumade, o suvaquim não dá pra fazê uma casa quinem essa daqui. Mais uma casa de pobe dá. Dá bem pra fazê uma casa de pobe". E aí cumade Aide  oiou pra eu e dixe: " Mas Dundera, eu quero qui tu e cumpade Pêdo, os dois, fique cum um pedacim mió de terra qui dê pra prantá arguma frutera, fejão, milho e fava. Oiei o riscado do sítio Azedo qui nois comprô e vi qui inziste uns pedacim de terra qui é cuma se fosse independente e eu tava pensano em te dá era um desse. Mais cuma tu só qué 'o suvaquim' qui tu escoieu, acho qui num vô mais ficá aperriano meu marido por causa de tu". Aí eu vi qui ela sabia qui eu tava quereno enganá ela e eu tava mermo. E ai eu dixe bem assim: " Me adescurpe , comadinha, eu quero tanto, mais tanto, tanto, aquela terra, qui dixe qui ela é menó do qui ela é. Ela, minha cumade, é piquena ,mais nela tem bica, tem frutêra já safrejano, tem lugá pra uma casa cum o terrero. É do jeitim qui a cumade pensa em dá pra eu. Aí a cumade se riu muito. Ela se riu e dixe bem assim: "Pode continuá chamano a terra de suvaquim qui eu vou dá  ela pra tu. Vou convessá hoje cum meu marido e amanhã tu vai sê dona de terra. Mais tem uma coisa: dou a terra se o Prácido Cidade Nuvem ti dé a inscritura da terra promode qui não vou dá nada de boca, tem qui sê de papé passado. Meu coração deu um pinote e eu dixe: Oxente, e tá mais do qui certa. Dimanhãzinha vô na Santana e conto tudim a ele, e se ele prometê a eu qui dá a escritura, eu já  sei qui a terra é da nega veia. A terra é de Dundera. A famia Rato vai sê propetara de sítio. Oxe, mais já tá no papo. E aí a cumade falô: "Fique em silêço. Nada de comentaro. Se tu abrí tua boca, Parente vai ficá chateado e tu não ganha a terra. E aí ela saiu da cozinha e eu chorei de alegria.

No ôto dia era sábado, dia de fêra e eu pedí a cumade mode ela dexá eu i falá cum o dotô Pracido. Ela dexô. Eu falei e ele dixe qui, se ela me desse a terra, ele dava as inscritura. E eu vortei na maió animação. E minha cumade  dixe qui eu ficasse esperano qui o Dotô falasse cum eu. E eu esperei. Numa noite, na foguêra, ele me preguntô si a muié dele já tinha dado a eu o suvaquim de terra  e eu arrespostei qui não, qui ela num tinha dito nada. Ai ele dixe bem assim: Dunda, tu levou minha muié no bico. Ela inzigiu qui eu ti dê a terra prumode de que, ela num sabe cuma será o dia de amanhã e num qué qui tu fique sem terra e sem casa. E eu vou te dá o terreno mais num pense qui tá me enganano não. Eu sei o valô do terreno. Vamo fazê um negoço nois dois?" Aí eu proguntei: qui negoço eu posso fazê cum o sinhô, Dotô? Ora Dunda, eu dou a terra a tu e tu me dá aquela burra qui tu tem e que é uma burra danada de boa pra lida aqui do meu sítio. Aí eu assuntei, assuntei e dixe: Mais seu Dotô, eu num posso fazê negoço cum aquela burra. Ela é qui nem fosse meu pai, minha mãe, meu irimão. É ela qui leva eu pra Santana. É ela qui ajuda eu em tudo. Cuma é qui eu vô sê propetara de terra sem a bichinha? Não seu Dotô, eu num posso fazê  esse negoço cum o sinhô. Aí minha cumade qui tava só de zoio e de zouvido dixe: " Meu quirido, num faça isso cum nossa cumade. Ela pode inté ficá doente. Duda a terra é sua. Na próxima semana vá  na Santana e pegue a escritura cum Dotô Pracido. E aí eu fui. Agora sô a muié mais rica do mundo. E o suvaquim virô um suvacão.  
   
- Lembro, e muito bem, comadre Dunda, dessa tua armação com minha mulher. Mas fico muito alegre quando passo por seu "suvaquim de terra" e vejo a bela bica, as fruteiras, as verduras. Acho que eu e minha mulher fizemos a verdadeira reforma agrária. Nenhum morador do Buriti ficou sem sua casa própria. O último que restava arrumar a vida, o Expedito, comprei-lhe uma casa com terreno lá no  Crato, pras bandas do Lameiro. 
Como diz sempre minha mulher, ninguém sabe como será o  dia de amanhã. Se um dia  estas terras forem vendidas, os  amigos que me ajudaram, os moradores, estarão sossegados em suas casas.    

- E o sinhô, meu cumpade, se alembra do tôro branco cum o cupim da cô de cinza e qui o boi de seu Hwigens Garcia rasgou a bragia dele ?
- Lembro sim. Foi um dia muito difícil para mim. Eu comprara aquele touro na Exposição Agropecuária de Crato ha poucos meses, o primeiro touro P O que possui. Todo mundo sabe que tenho o maior zelo com meu gado e com meus cavalos. Meu cunhado Hwigens, não. Para ele, basta  que o  gado esteja sadio e  bem alimentado. Não sei de onde ele arranjou aquele boi entroncado, brabo, feio e ladrão.  Eu pedi-lhe que  tivesse cuidado com o mesmo não permitindo  que ficasse em cercados próximos aos meus. Falei também com minha irmã, Maria Parente. Disse-lhe que, daquele boi, as vacas teriam bezerros pequenos, feios, sem serventia. Ela assegurou-me que resolveria a questão, desfazendo-se do mesmo. 
Um dia, nosso gado lambia a borra do engenho quando o peste do boi, derrubando a cerca do lugar onde estava, partiu para a briga com meu touro. Como era baixinho e entroncado, sua chifradas feriam meu touro na barriga. Os cambiteiros e todo o pessoal do engenho, a muito custo,conseguiu separar os dois. Mas a desgraça já fora feita. A braguilha do meu touro estava partida em dois pedaços. Fiquei furioso. Perdera um bicho de estimação e já não mais podia contar com filhotes seus. Nunca em minha vida tive tanta raiva como naquela tarde. Meu desejo era de matar o boi, mas, como sempre, deixara meu revolver em nossa casa em Crato. Quando ia saindo em minha camioneta para falar com meu cunhado, pelo retrovisor, vi minha mulher que corria em minha direção.  Parei o carro e esperei para conversar com ela. Foi assim, ou não foi, Aide?  
- Foi sim, Parente. Eu estava fazendo uns bolos quando Zé de Ana chegou muito aflito, dizendo-me que estavas enraivecido e  que pretendias ir à casa da tua irmã,  Maria Parente, matar um boi que desgraçara o touro P. O. que compraste juntamente com cinco novilhas neroli.
- E aí, como só tu podes fazer, fui-me aquietando. Mas um desgosto enorme apertava-me o coração. Eu sonhava com os bezerros que aquele touro nos daria. Agora, como te disse na hora, o belo touro seria vendido para o abate.
- Aí eu cheguei com um copo cum agua , gelo e  açucar, tá quá, minha cumade tinha dito pra eu levá.Num foi cumade?
- Foi sim, Dundera. Foi desse jeito mesmo. Enquanto Parente bebia a água açucarda, pedi-lhe que  me levasse até ao lugar onde estava o touro. À princípio, recuso-se. Depos cedeu aos meus rogos. Juntos, vimos e examinamos o rasgão. Então eu julguei que o melhor a fazer seria costurar a braguilha, esperar algum tempo ,e somente se o touro não conseguissse copular com as vacas, vendê-lo ao Clemensor para o abate.

- Não concordei com a  proposta. Seria um sofrimento ver aquele belo touro sem serventia, no curral, junto com as belas novilhas que comprara. Mas mulher é o bicho mais sabido que Deus criou. A minha, assegurando-me que nosso touro não nos falharia, pediu a Zé de Ana que a ajudasse, já que eu me recusara a fazê-lo. Os dois pegaram os instrumentos e os desinfetaram. Pegaram uma agulha de costurar saco e também a desinfetaram. 
- E aí minha cumade  pegou  a cestinha de linha dela e pegou uma linha grossa de bordado e mandou eu botar ela pra  frevê na água.
- Quando tudo estava no ponto, pedi a Zé de Ana e ao compadre Pedro que escolhessem homens fortes para derrubarem e  amarrarem o touro. Quando o bicho estava caído, injetei-lhe, na braguilha, anestésicos daqueles que seu Dotô usa no consultório, e cuidadosamente, costurei-a. Um rasgão de mais de dois palmos. E como a  única linha grossa que , naquele momento, havia em minha caixa de costura era  vermelha, os pontos vermelhos destacavam-se no branco acinzentado do touro.
- E depois disso, arrancaste de mim a  promessa de que eu daria um tempo para que a ferida cicatrizasse e mais uns meses para ver se o touro cobriria as vacas. Mas, mesmo depois de ver bezerros lindos nascidos do touro costurado, meu desgosto era grande sempre que via o aleijão do bicho. Tão logo foi possível, vendi-o e comprei  outro.
- É, mais me alembro qui o sinhô inté dexô um filhote do tôro costurado para virá o tôro mió do rebâim. Num foi seu Dotô?
-Foi sim, Rapaz Vei. 
- E cuma foi qui o sinhô se arresolveu cum seu cunhado?
- Maria Parente, tão logo soube do ocorrido, para não desgostar o irmão, deu um sumiço no feioso e malandro boi.
- Eita qui se a gente fosse contá os assucedido  daqui do sítio levava um ano e não terminava.
- Pois é. Eu me alembro  de muita coisa: do dia da  carrera da cumade pra dento do sítio, das festa, do dia qui a cobra mordeu um minino das Palmera e ele tomô do remédio qui o dotõ dá pros bicho e  ele num morreu.
- Sim, comadre Dunda, fizeste bem em recordar daquela noite em que Aide saiu correndo feito uma doida e ficou por  horas nas fruteiras. Quando retornou, por mais que eu perguntasse, nunca me disse o porquê daquela correria toda. De hoje não escapas, minha mulher. Vamos lá conta-nos

o que aconteceu. Eu e nossas filhas chamando por ti e tu sem nos responder. Kel e Tetê chorando e eu sem poder procurar-te temendo deixar as duas mais aflitas.

- Oxe, meu cumpade, minha cumade tava cum aquela dor de cabeça  danada qui ela tinha e qui  num tem mais. É mió num falá no assucedido. Desculpa, comadre, eu prometi qui nunca falava. Mais escapou. 

- Não te incomodes, comadre. Qualquer dia eu conto o que aconteceu. Já está quase chegando a meia noite. Vamos nos organizar para as orações.

Com a Bíblia proclamamos o Evangelho segundo São João, capítulo 20 dos versículos 1 ao 18. Partilhamos o mesmo. Depois rezamos como o fizeram os jovens na  fornalha ardente, do livro de Daniel, capítulo 3, versículos 52 a 65. Terminamos saudando Nossa Senhora:

Rainha do Céu, alegrai-vos, aleluia,
pois o Senhor que merecestes trazer em vosso seio, aleluia,
ressuscitou, como disse, aleluia;
rogai a Deus por nós, aleluia.
Para que nos conceda a graça que te pedimos.(silêncio)
Aleluia! Obrigado. Aleluia!

Cada um pediu a Virgem Mãe a Graça desejada. E após nos abraçarmos desejando Feliz Páscoa, festejamos a data com um bom churrasco.
Casa do Buriti e parte do terreiro. Santana do Cariri-Ce
                                                                       
Fim de uma das noitadas no Buriti. Seu Dotô cochilando,
 as cotas da cumade Aide e alguns dos moradores.
          




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