domingo, 10 de fevereiro de 2013




      13. Carlos Aécio e as notas escolares 

      
... e sentando-se no chão, costurou um novo retalho  naquele recebido.
Oba! Circo à vista!!!


Na metade dos anos quarenta, ao ingressamos, Aécio e eu, no Grupo Escolar Martiniano de Alencar, a nota máxima era doze e não dez, como atualmente. Em nossa casa estabeleceu-se que, até sete a nota obtida seria aceita, de seis a baixo, nunca. “Uns meninos que têm de tudo, do bom e do melhor e que não têm outra obrigação que não seja a de estudar, e para seu próprio bem, como não obterem a nota máxima?Então, eu tinha o maior cuidado com relação às notas. Acostumei-me a notas altas. Ela se tornaram tão corriqueiras que perderam a graça. Entretanto, tanto papai quanto mamãe nos perguntavam constantemente: “ E as notas?"



Acostumado que fora a me ter por perto tomando anotações, registrando o que devíamos estudar, trabalhar nos fins de semana, Aécio ficou por sua própria conta. Com sua inteligência privilegiada, bastava tão somente ficar atento. Os conteúdos apresentados  fixavam-se em sua  cabecinha loura e bem feita. Eu tinha que estudar e muito.


Pingo de Ouro, seu cavalinho branco, o colocava num patamar mais alto do que o dos demais colegas. A par disso, os gibis, guris, almanaques e revistas lhe tomavam todo o tempo. Mamãe percebendo que o filho descuidava-se dos estudos, reclamou e lhe impôs um horário. Só que, enquanto ela pensava que estudava, ele lia revistas e tudo o que lhe satisfazia o gosto.


Papai e mamãe quase que diariamente perguntavam-lhe: “ E como vão as notas, Carlos Aécio? “ Muito boas, papai. Muito boas, mamãe.”

Cursávamos o segundo ano primário quando aconteceu o fato a seguir:
                                                                o circo
 de muitos retalhos combinados, medidos, costurados, segurados pelo mastro.


Aide setentona no CIRCO PORTUGAL em Crato, Ceará.


Chegou um afamado circo em Barbalha justamente na época dos exercícios escritos que antecediam  as provas do final do primeiro semestre letivo. Papai e mamãe estabeleceram que "quem merecesse, iria aos espetáculos mais de uma vez".

Aécio manteve sua rotina diária de pouco estudo e de muitas brincadeiras. Dava suas escapadelas e se juntava à criançada que percorria a cidade seguindo o palhaço  perna de pau, ajudando-o a divulgar o circo. O referido palhaço cantava, fazia perguntas e a meninada, eufórica,   respondia-lhe de  modo cadenciado, cantando com ele. 
                                                             

palhaço, perna de pau

-Hoje tem espetáculo? 
- Tem/ sim senhor.
-E é as sete e meia da noite?
- É/ sim senhor.
- E o circo tem trapezistas?
- Tem/ sim senhor.
- E o circo tem o  homem que cospe fogo?
- Tem /sim, senhor.
- E o circo tem homem que domina  leão?
- Tem/ sim senhor
- E o palhaço, o que é?
- É ladrão de mulher.
- E o palhaço ,o que foi?
- Ladrão de boi. 
- Arrocha negrada...
As crianças gritavam alto aplaudindo suas palhaçadas.
- E arrocha mais alto.
As crianças  berrando, rindo alto, felizes, amando aqueles precioso momentos.
-Eu vou ali e volto já.
- Vai comer maracujá
- E cadê a minha avó?
- Tá na mata de Zé Majó.
- Arrocha negrada...


trapezistas:  salto mortal
trapezistas: preparando-se .
Com essa nova e escondida atividade, meu irmão quase nada estudou dos conteúdos apresentados. Sua imaginação vagava por entre os personagens do circo: trapezistas, palhaços, malabaristas, domadores...
Malabarista 
domador
Ao receber um dos exercícios escritos, um grande e vermelho um destacava-se bem no meio da folha do mesmo. Não podia ser verdade aquilo que seus olhos viam, pensou. Depois, dando-se conta da realidade, estarrecido, fez logo a conta: “ de um para doze faltam onze, vou receber onze bolos de palmatória e também não irei ao circo. Fiarei em casa sozinho. Pensa minha cabecinha, pensa”. 

Um sorriso vitorioso, brotou de dentro de si. Havia encontrado a solução perfeita. Abrindo a bolsa escolar retirou do estojo um lápis vermelho, do mesmo vermelho da nota, e caprichadamente, imitando com perfeição a letra da professora, acrescentou um dois.  “Perfeito, um belo doze. Circo à vista”.


Feliz com a solução do problema que o atormentava, de papai veio-lhe a indagação, tão logo chegou em nossa casa:


- Como te saíste, meu filho, em teus exercícios preparatórios?

-Muito bem, meu pai. Hoje recebi um deles.

- Então deixa que eu o veja.

- Aí está, papai.

- Tens certeza de que a nota está certa, meu filho. Não é demais?

- Tenho, papai. É a nota justa. Estudei muito.

- Tens certeza, meu filho?

- Tenho, sim, papai.

- Então vê, com teus próprios olhos, o exagero da tua professora.

Olhando nas mãos de nosso pai, da prova saltava rindo, debochando dele, um 21. Na pressa, para não ser pego, escrevera o dois antes do um.


- Aécio, meu filho, porque fizeste isto contigo mesmo, conosco e com nossa família?

- Eu estava com medo papai. Medo dos bolos de palmatória. Medo de perder o circo.

- Não sabes o mal que fizeste. Rasuraste um documento pondo-o a teu favor. Mentiste descaradamente para ti, para nós. Não respeitaste tua professora. Pensaste ser ela uma tola, e tu um sabe-tudo. Vá pegar a palmatória e volte  aqui.


Um a um, vagarosamente, os bolos foram dados: de 1 para 12, 11. 11 bolos bem aplicados pela Chiquinha do Torno, a palmatória.


Papai, após o castigo, o abraçou e prometeu-lhe que nunca mais o castigaria por causa de notas baixas e  acrescentou:


- Hoje mesmo, nós dois vamos começar a ler um livro que nos ensinará  a respeitar as pessoas. Vamos também, juntos, procurar a lei que fala sobre a pena que sofrem, ou deveriam sofrer, aqueles que rasuram documentos. E com relação ao circo, não és merecedor dele pelo ato imoral que praticaste. Eu também não irei. Se tu agistes assim, devo, de alguma forma, ter contribuído para isso. Vamos juntos limpar nossas almas.
 Aécio com sua carinha de "aprontador".
Imaginem este  senhoquando criança.
                                                       

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