domingo, 10 de fevereiro de 2013




                      5A casa dos LANDIM LUNA




Lar: amar, perdoar,amparar,aceitar, ajudar,costurar, partilhar... 

À rua Pinto Madeira 125, na cidade de Barbalha, Região do Cariri, Ceará, está uma casa aparentemente comum como tantas outras, mas diferente pela história nela construída, vivida, compartilhada. Especial porque nela nasceu gente. Ela ouviu e registrou em seu chão, suas paredes e telhado o primeiro grito de vitória pela chegada ao mundo de cada um e de todos  os nove  irmãos Landim Luna. Uma casa-lar, ela sabe que nunca deixará de ser porque "viu e ouviu, gestou em si os meninos e meninas de seu Jesus e de dona Iaci".

Quando a história de nossa família começou, ao lado esquerdo de nossa casa havia um terreno baldio onde depois foi construído o mercado público. Em seguida, a linda casa de seu Bernardino, patriarca dos Carleal.  

À direita, a casa de tio  Ótom (irmão de papai) e de nossa querida tia Silvinha. Para nos não outra casa mas a continuação da nossa e vice-versa. Vivíamos como se fossemos uma só família. 


Ótom Cruz Luna, Tio Ótom
                                                       
Francisca Cidàlia de Luna, tia Silvinha


Vizinho à casa da tia, um pequeno muro com um portão estreito, propriedade  a seu Jesus Soares. Residia com a família na  rua do  Vidéo. Coubera-lhe, por herança, não só a citada casa, mas também um terreno nos fundos da mesma, em forma de esse - S- e que ia se estreitando ladeando a farmácia de seu Alfredo  até se tornar um pequeno “corredor” de três metros, mais ou menos, cuja saída ficava em nossa rua: um pequeno muro com uma porta. Ao mesmo, juntava-se um outro, alto e bem feito da farmácia de seu Alfredo Correia com uma calçada também perfeita. E como havia um declive sempre ascendente de nossa rua  à do Video, batizamos esta parte de “ladeira”. Os carrinhos de madeira, rolimã, e os patins desfilavam constantemente pela mesma. Em sua louca velocidade, percorriam toda a calçada desse lado da rua . Pegando velocidade na parte alta onde estava a farmácia, desciam a “ladeira” em disparada parando na calçada de nossa casa e, posteriormente, com a construção do mercado público, estancando ali. Seu Bernardino e sua educada família nunca foram incomodados pelo barulho que as geringonças faziam.




Na calçada oposta estavam: um terreno murado, pertença do tio Chicô, (Francisco de Luna Machado) e de tia Rosinha (Rosa Cruz Luna ou Rosa Luna Machado) irmã de nosso pai, transformado  depois em armazém e para onde transportou sua bodega.  Vinha a seguir sua grande e bem cuidada casa, a da dona Neném Celestino (professora), a do seu Zeca Duarte, a bodega do tio Chicô (depois reformada e transformada no Instituto Dom Bosco, uma escola dirigida por Maria do Carmo, sua filha ). O grande Armazém do tio Ótom, na esquina, completava o primeiro dos dois quarteirões que compunham nossa rua, separados um do outro por um beco, o Buraco da Vaca. No tempo de nossa infância, um terreno baldio, meio sujo e visto com olhares controversos. Para nossos pais, um lugar perigoso cheio de armadilhas. Para nós, nosso celeiro, o lugar onde encontrávamos tudo o que necessitávamos para nossas brincadeiras. Um lugar encantado e também transformado tanto pelas meninas quanto pelos meninos, em mictório, nas noites de lua quando a Pinto Madeira se tornava pequena para nossas brincadeiras.


Rua Pinto Madeira/ Barbalha, século XXI( nossa casa a quinta)
sobre a qual está uma pequena nuvem branca)



Uma bodega ficava na esquina do segundo quarteirão. Um estabelecimento comercial proibido para as meninas... Depois vinham minúsculos estabelecimentos de sala e cozinha, OS CAFÉS. Ali eram vendidos:  café, tapioca, pão com doce de leite, cocadas, filhós, variados doces, merendas e  oferecido almoço aos feirantes nos sábados, dia da feira semanal em Barbalha. Dentre eles destacava-se não só pela sala mais espaçosa e organizada, como também pelo atendimento acolhedor, o Café de Maria Cavaleiro. A fama do tempero da gostosa comida que cozinhava, do capricho e asseio no preparo da mesma , as cocadas, o tijolo de leite, bifes, tapiocas e beijus, e variados tipos de doce que servia aos clientes fez crescer  de tal forma a  clientela que, sem combinar com a proprietária, os usuários do referido café  estabeleceram o costume da reserva.  “Maria, anota meu nome aí porque venho almoçar hoje aqui.” “E se  não vieres criatura?” “Ora, e eu haveria de perder a oportunidade de provar de teu tempero? Tá desconfiada? Então eu pago adiantado”. 



Nós, crianças Luna, em nossa rua, formávamos como que uma tribo. Muitos primos e primas, gente para brincar e com quem brigar, passear, trocar ideias, não faltava...



Das primas mais velhas do que nós, os Landim Luna, Miriam, filha de tia Silvinha, era nossa princesa. Nós a amávamos e a admirávamos porque era diferente de todas as mocinhas que conhecíamos: amável, educada, fina, gentil, linda, muito parecida com nossa querida tia Silvinha. Quando, nos dia de lua cheia, podíamos brincar nas calçadas, ( não havia  iluminação elétrica) e tanto ela quanto Iolanda, filha mais velha de tia Rosinha “se dignavam” brincar conosco, era difícil formar os times porque queríamos sempre ficar no  da Miriam.



Para nossa rua, chamada pela família rua dos LUNA, vinham  outros primos. Os mais assíduos:  Inês e Zé Nogueira, filhos de tia Odete, os filhos e filha do tio Odílio: Helio, Girleno, Sulamita e o pequeno”Tinha” Francisco, o caçula do tio, e a filharada da tia Lindalva.



Quando brincávamos na rua, nossos pais nos davam liberdade total contanto que nos mantivéssemos apenas em nossos limites: nosso quarteirão.  Nossos primos, Inezinha  e Welliginton, um dos filhos do tio Ótom, eram exímios contadores de histórias e inventores de brincadeiras. As  vezes ficávamos tão ligados a seus contos que a rua silenciava...



Em nossa casa, a máquina de costura de nossa mãe ocupava um lugar estratégico. Sem que dela saísse, podia ver as pessoas passando pela calçada, quem desejava entrar em nossa casa, a cozinha, o quintal, e estava sempre a par de tudo o que acontecia.



Ao lado da máquina, sempre presentes, uma auxiliar de costura e cadeiras dispostas aos visitantes. Havia um contínuo entrar e sair de pessoas. Além das sobrinhas mocinhas que vinham contar-lhe as novidades relativas a namoros, flertes, festas, e pedir-lhe ajuda, conselhos, havia as clientes, as amigas, e pessoas que estavam sempre a procurá-la em busca de solução para algo.



Vinham também em busca da nossa mãe, aquelas mulheres ciumentas que, por serem mal amadas, perseguiam aquelas que viviam bem e amadas. Elas , parece, seguiam os passos de Jesus Luna para ter o gostinho de “contar a Iaci, tão segura de si”, as escapadelas do marido. Mamãe percebia tudo e até se divertia. Papai gostava de vê-la assim tão solicitada, tão aberta às novidades, tão segura de si. Ele a amava e a admirava.Buscava esconder a dependência que dela tinha, mas não conseguia. Ela sabia muito bem quem ele era e quem era ela para ele. Mantinha, então, “um ar” de quem nem está aí para o que quer que acontecesse relativo a mulheres que chegavam à Barbalha em busca de aventuras amorosas, para os casos dos amigos de meu pai, e tantas coisas mais... Eu ali por perto ouvia os ti-ti-tis, as insinuações “das amigas” e percebia que nossa mãe se mantinha imperturbável.



Papai sabia, e muito bem, quem era  mamãe. Gostava do modo como resolvia os problemas, de sua natureza indomável, de seu olhar penetrante ,de seu modo de ser e viver e sabia muito bem que com ela o sim era sempre sim, e o não, sempre não. Sabia também do que era capaz de fazer quando tratada sem o devido respeito. Ela percebeu muito cedo que “fingir-se indiferente” ser o caminho certo para manter o marido "nos eixos". Mas, inteligente e discretamente, tomava medidas para mantê-lo  sempre apaixonado. Ele fazia o maior esforço para parecer o indomável, o conquistador mas, na verdade, “comia nas mãos dela”.



Os dois formavam um casal lindo. Dr. Zir Leite, nos contou que a primeira vez que viu nossos pais de braços dados nas ruas de Barbalha ficou maravilhado diante de tanta beleza. Acredito nisso sim, porque eu, como filha, também ficava orgulhosa da beleza e da harmonia que havia entre os dois e ao compará-los  aos pais das outras crianças, sentia-me privilegiada.


Nós, ao prepararmos nossas tarefas escolares, nunca utilizávamos a mesa da copa, lugar onde nossa mãe cortava os lindos vestidos e enxovais de noivas. Na sala ao lado, ficávamos estudando. Ela de ouvidos atentos.Nunca nos faltou auxílio em nossos estudos. Contávamos com ótimos professores particulares de matemática e de língua portuguesa. Fui agraciada com uma professora de bordado e um professor de música. As tias, irmãs do papai, achavam aquilo uma extravagância, mamãe, uma necessidade. Ela sonhava grandes sonhos para nós e nós sonhávamos com ela e tudo fazíamos para não a decepcionar. E papai, onde ficava em toda essa história? Acatava, ajudava e olhava com alegria tudo aquilo que dizia respeito tanto a nossa mãe quanto a nós, seus filhos. Cada elogio dos professores  feito a um dos filhos, ele o repetia vezes sem conta aos amigos. E como tinha a seu dispor os viajantes que forneciam  material para sua próspera fábrica de calçados, sempre nos presenteava com objetos não existentes no comércio do Cariri: caneta-tinteiro, caixinhas de madeira, caixas grandes contendo lápis de cor, aquarelas, com as quais nunca sonhamos que existissem, pinceis e  muitas coisas mais...

Aos meninos, Aécio e Aristênio, desde cedo, papai atribuiu serviços obrigatórios: cuidar bem dos cavalos, banha-los todos os dias, auxiliar o moço que cuidava do nosso gado ajudando-o a preparar as rações, a conduzir, todas as tardes, o gado da Malhada ( um terreno onde o gado pastava e que ficava depois do Riacho do Ouro) ao curral. Terminado o serviço, nada de ficarem pelas ruas. O lugar deles era na sapataria. Eu ficava mais em casa. A mim, muita coisa me era proibida. “Isso é brincadeira de menino”. Uma chatice sem fim ...

Eram mantidas em nossa casa três empregadas domésticas fixas, e mais uma auxiliar para os dias de sábado.  Divina, Regina, e uma outra  que, com o passar do tempo, foi sendo substituída por muitas outras até chegar a vez da Tiquinha.

Pode parecer exagero, mas em nossa casa necessitávamos de muitas trabalhadoras. Uma delas, a mais nova, era para os recados, servir café às visitas, fazer compras.  Divina reinava na cozinha como rainha absoluta. Minha mãe não sabia, nem mesmo, coar um café. Nunca a vi lavando um prato sequer. Entretanto, nunca compramos uma barra de sabão. Todo o usado em nossa casa era “fabricado” por ela. A matéria prima: pinhão bravo( Jatropha molissima) ou tingui ( Magonia Pubescens) acrescidos de potassa. 



Tiguizeiro


Tingui,asa de borboleta
Tingui, fruto
Sementes: asas de borboleta

Chegado o tempo  do  fabrico, se a matéria prima fosse tingui, já recebíamos as sementes,"as asas de borboleta" leves e lindas, desnudas de sua primitiva casca marrom. Por sua alta  toxidade, proibidos ficávamos de nos aproximarmos das mesmas. Papai nos advertia: "qualquer terreno onde haja tinguizeiros, o gado não pode chegar perto. Essas asinhas de borboleta, como vocês chamam o tingui, são traiçoeiras. Matam qualquer animal que se alimente com as mesmas. Já se divertiram pegando as 'asinhas'  com as mãos. Agora corram, lavem bem as mãos e fiquem bem longe desta armadilha danada." 

Se o  pinhão bravo  fosse a matéria prima, nós não saiamos à noite para brincar. A família toda, inclusive papai, ficava ao redor da mesa ,aquela das costuras, descascando os pinhões e ouvindo as histórias, ditos e cantigas de nosso pai. 
Pinhão bravo
Pinhão bravo, comum na caatinga.
Frutos do pinhão bravo
Sementes usadas no fabrico do sabão  







Era um momento prazeroso somente nosso. Não o dividíamos com ninguém. Previdentes, fechávamos a única porta de acesso, e nos deliciávamos com o trabalho-reunião.

 Quando a quantidade  dos frutos desnudos de suas escuras e grossas casacas afiguravam-se suficientes, parávamos o trabalho e  esperávamos ansiosos a chegada do dia seguinte : o ritual do fabrico.

Siá Maria, nossa lavadeira e ajudante da mamãe naquela preparo do sabão,  chegava cedo e tomava o café da manhã conosco. Nós a amávamos e a respeitávamos. Foi uma figura que marcou nossas vidas e que nos ensinou, com seu porte altivo, com seu esmerado trabalho a respeitar todos os trabalhadores, independendo do tipo de trabalho realizado. Nossos pais nos chamavam a atenção para o valor do trabalho em si.(toda nossa roupa era lavada por ela na nascente  Santa Rita, e da mesma exalava o cheiro gostoso de roupa limpa, posta a “quarar” ao sol e secada ao vento ).

Potassa
Durante aquele dia mamãe não costurava. Atenta, de olho na mistura, intuitivamente sabia a hora certa de adicionar potassa àquela  pasta fervente. 

                                                                                                                                          Auxiliava Siá Maria a mexer a pasta formada no tacho de cobre. 


Marcava, então, a hora para “dar o ponto” no sabão. A casa toda cheirava um cheiro bom. Tia Rosinha implicava com aquela mania da minha mãe. Ela por sua vez retrucava com umas das suas boas piadinhas e, à tardinha, lá estava aquela “montanha” de sabão, pronta para ser depois repartida em pedaços. Esse ritual  repetia-se sempre que necessário. Era só nosso e nos orgulhávamos dele.



                                                                   
Vovó Neném ( Bárbara Maciel Landim) não sabia onde a filha, tão avessa a cozinha, aprendera aqueles segredos relativos ao fabrico 

do sabão. Ela nunca nos revelou e também nunca ensinou como calculava os ingredientes usados. Coisas da nossa mãe,Maria Iaci Landim Luna

Aide Luna Parente

Tendo ouvido sobre ERASMO SHALLKYTTON,
Busquei na internet e li sua linda poesia: TINGUI- UM BOM SABÃO DO SERTÃO

Transcrevo abaixo quatro estrofes da mesma. Escolhi aquelas que me transportam a nossa casa em Barbalha...





"É somente aqui que há tanto tingui
No centro poleiro do meu sertão,
Fruto selvagem, malvado é daqui,
O vivo não come, morre em aflição.

Ela nunca estudou o que faz a química.
Tem o dom da alma na singela preparação.
Não conhece nem a cadeia de combinações,
Muito menos sabe o que é gordura vegetal.

Mexe e remexe, mexe e remexe,
E dá o ponto com uma bordoada na panela,
Que zine e zoa por todo o sertão,
Da minha Sambaíba de caxias- Maranhão.




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