5. A casa dos LANDIM LUNA
Lar: amar, perdoar,amparar,aceitar, ajudar,costurar, partilhar...
À rua Pinto Madeira 125, na
cidade de Barbalha, Região do Cariri, Ceará, está uma casa aparentemente comum
como tantas outras, mas diferente pela história nela construída, vivida,
compartilhada. Especial porque nela nasceu gente. Ela ouviu e registrou em seu
chão, suas paredes e telhado o primeiro grito de vitória pela chegada ao mundo
de cada um e de todos os nove irmãos Landim Luna. Uma casa-lar, ela sabe que nunca deixará de ser
porque "viu e ouviu, gestou em si os meninos e meninas de seu Jesus e de
dona Iaci".
Quando a história de nossa
família começou, ao lado esquerdo de nossa casa havia um terreno baldio onde
depois foi construído o mercado público. Em seguida, a linda casa de seu
Bernardino, patriarca dos Carleal.
À direita, a casa de tio Ótom (irmão de papai) e de nossa querida
tia Silvinha. Para nos não outra casa mas a continuação da nossa e vice-versa.
Vivíamos como se fossemos uma só família.
Ótom Cruz Luna, Tio Ótom |
Vizinho
à casa da tia, um pequeno muro com um portão estreito, propriedade a seu
Jesus Soares. Residia com a família na rua do Vidéo. Coubera-lhe, por herança, não
só a citada casa, mas também um terreno nos fundos da mesma, em forma de esse -
S- e que ia se estreitando ladeando a farmácia de seu Alfredo até se tornar um
pequeno “corredor” de três metros, mais ou menos, cuja saída ficava em nossa
rua: um pequeno muro com uma porta. Ao mesmo, juntava-se um outro, alto e bem feito da farmácia de seu
Alfredo Correia com uma calçada também perfeita. E como havia um declive sempre
ascendente de nossa rua à do Video, batizamos esta parte de “ladeira”. Os
carrinhos de madeira, rolimã, e os patins desfilavam constantemente pela mesma.
Em sua louca velocidade, percorriam toda a calçada desse lado da rua . Pegando
velocidade na parte alta onde estava a farmácia, desciam a “ladeira” em
disparada parando na calçada de nossa casa e, posteriormente, com a construção
do mercado público, estancando ali. Seu Bernardino e sua educada família nunca foram incomodados pelo barulho que as geringonças faziam.
Na
calçada oposta estavam: um terreno murado, pertença do tio Chicô, (Francisco de
Luna Machado) e de tia Rosinha (Rosa Cruz Luna ou Rosa Luna Machado) irmã de
nosso pai, transformado depois em armazém e para onde transportou sua
bodega. Vinha a seguir sua grande e bem cuidada casa, a da dona
Neném Celestino (professora), a do seu Zeca Duarte, a bodega do tio Chicô
(depois reformada e transformada no Instituto Dom Bosco, uma escola dirigida
por Maria do Carmo, sua filha ). O grande Armazém do tio Ótom, na esquina,
completava o primeiro dos dois quarteirões que compunham nossa rua, separados
um do outro por um beco, o Buraco da Vaca. No tempo de nossa infância, um
terreno baldio, meio sujo e visto com olhares controversos. Para nossos pais,
um lugar perigoso cheio de armadilhas. Para nós, nosso celeiro, o lugar onde
encontrávamos tudo o que necessitávamos para nossas brincadeiras. Um lugar
encantado e também transformado tanto pelas meninas quanto pelos meninos, em
mictório, nas noites de lua quando a Pinto Madeira se tornava pequena para
nossas brincadeiras.
Rua Pinto Madeira/ Barbalha, século XXI( nossa casa a quinta) sobre a qual está uma pequena nuvem branca) |
Uma
bodega ficava na esquina do segundo quarteirão. Um estabelecimento comercial
proibido para as meninas... Depois vinham minúsculos estabelecimentos de sala e
cozinha, OS CAFÉS. Ali eram vendidos: café, tapioca, pão com doce de
leite, cocadas, filhós, variados doces, merendas e oferecido almoço aos
feirantes nos sábados, dia da feira semanal em Barbalha. Dentre eles
destacava-se não só pela sala mais espaçosa e organizada, como também pelo atendimento
acolhedor, o Café de Maria
Cavaleiro. A fama do tempero da gostosa comida que cozinhava, do capricho e
asseio no preparo da mesma , as cocadas, o tijolo de leite, bifes, tapiocas e
beijus, e variados tipos de doce que servia aos clientes fez crescer de tal
forma a clientela que, sem combinar com a proprietária, os usuários do
referido café estabeleceram o costume da reserva. “Maria, anota meu
nome aí porque venho almoçar hoje aqui.” “E se não vieres criatura?” “Ora, e
eu haveria de perder a oportunidade de provar de teu tempero? Tá
desconfiada? Então eu pago adiantado”.
Nós,
crianças Luna, em nossa rua, formávamos como que uma tribo. Muitos primos e
primas, gente para brincar e com quem brigar, passear, trocar ideias, não
faltava...
Das
primas mais velhas do que nós, os Landim Luna, Miriam, filha de tia Silvinha,
era nossa princesa. Nós a amávamos e a admirávamos porque era diferente de
todas as mocinhas que conhecíamos: amável, educada, fina, gentil, linda, muito
parecida com nossa querida tia Silvinha. Quando, nos dia de lua cheia, podíamos
brincar nas calçadas, ( não havia iluminação elétrica) e tanto ela quanto
Iolanda, filha mais velha de tia Rosinha “se dignavam” brincar conosco, era
difícil formar os times porque queríamos sempre ficar no da Miriam.
Para
nossa rua, chamada pela família rua dos LUNA, vinham outros primos. Os
mais assíduos: Inês e Zé Nogueira, filhos de tia Odete, os filhos e filha
do tio Odílio: Helio, Girleno, Sulamita e o pequeno”Tinha” Francisco, o caçula
do tio, e a filharada da tia Lindalva.
Quando
brincávamos na rua, nossos pais nos davam liberdade total contanto que nos
mantivéssemos apenas em nossos limites: nosso quarteirão. Nossos primos,
Inezinha e Welliginton, um dos filhos do tio Ótom, eram exímios contadores de
histórias e inventores de brincadeiras. As vezes ficávamos tão ligados a
seus contos que a rua silenciava...
Em
nossa casa, a máquina de costura de nossa mãe ocupava um lugar estratégico. Sem que
dela saísse, podia ver as pessoas passando pela calçada, quem desejava entrar
em nossa casa, a cozinha, o quintal, e estava sempre a par de tudo o que
acontecia.
Ao lado da máquina, sempre presentes, uma auxiliar de costura e cadeiras dispostas aos visitantes. Havia um contínuo entrar e sair de pessoas. Além das sobrinhas mocinhas que vinham contar-lhe as novidades relativas a namoros, flertes, festas, e pedir-lhe ajuda, conselhos, havia as clientes, as amigas, e pessoas que estavam sempre a procurá-la em busca de solução para algo.
Ao lado da máquina, sempre presentes, uma auxiliar de costura e cadeiras dispostas aos visitantes. Havia um contínuo entrar e sair de pessoas. Além das sobrinhas mocinhas que vinham contar-lhe as novidades relativas a namoros, flertes, festas, e pedir-lhe ajuda, conselhos, havia as clientes, as amigas, e pessoas que estavam sempre a procurá-la em busca de solução para algo.
Vinham
também em busca da nossa mãe, aquelas mulheres ciumentas que, por serem mal
amadas, perseguiam aquelas que viviam bem e amadas. Elas , parece, seguiam os
passos de Jesus Luna para ter o gostinho de “contar a Iaci,
tão segura de si”, as escapadelas do marido. Mamãe percebia tudo e até se
divertia. Papai gostava de vê-la assim tão solicitada, tão aberta às novidades,
tão segura de si. Ele a amava e a admirava.Buscava esconder a dependência que
dela tinha, mas não conseguia. Ela sabia muito bem quem ele era e quem era ela
para ele. Mantinha, então, “um ar” de quem nem está aí para o que quer que
acontecesse relativo a mulheres que chegavam à Barbalha em busca de aventuras
amorosas, para os casos dos amigos de meu pai, e tantas coisas mais... Eu ali por
perto ouvia os ti-ti-tis, as insinuações “das amigas” e percebia que nossa mãe
se mantinha imperturbável.
Papai
sabia, e muito bem, quem era mamãe. Gostava do modo como resolvia os problemas, de sua natureza indomável, de seu olhar penetrante ,de seu modo de ser e viver e sabia muito bem que com ela o sim era sempre sim, e o não, sempre não. Sabia também do que era capaz de fazer quando tratada sem o devido respeito. Ela
percebeu muito cedo que “fingir-se indiferente” ser o caminho certo para
manter o marido "nos eixos". Mas, inteligente e discretamente, tomava medidas para
mantê-lo sempre apaixonado. Ele fazia o maior esforço para parecer o
indomável, o conquistador mas, na verdade, “comia nas
mãos dela”.
Os
dois formavam um casal lindo. Dr. Zir Leite, nos contou que a primeira vez que
viu nossos pais de braços dados nas ruas de Barbalha ficou maravilhado diante
de tanta beleza. Acredito nisso sim, porque eu, como filha, também ficava
orgulhosa da beleza e da harmonia que havia entre os dois e ao compará-los
aos pais das outras crianças, sentia-me privilegiada.
Nós,
ao prepararmos nossas tarefas escolares, nunca utilizávamos a mesa da copa,
lugar onde nossa mãe cortava os lindos vestidos e enxovais de noivas. Na sala
ao lado, ficávamos estudando. Ela de ouvidos atentos.Nunca nos faltou auxílio
em nossos estudos. Contávamos com ótimos professores particulares de matemática
e de língua portuguesa. Fui agraciada com uma professora de bordado e um
professor de música. As tias, irmãs do papai, achavam aquilo uma extravagância,
mamãe, uma necessidade. Ela sonhava grandes sonhos para nós e nós sonhávamos
com ela e tudo fazíamos para não a decepcionar. E papai, onde ficava em toda
essa história? Acatava, ajudava e olhava com alegria tudo aquilo que dizia
respeito tanto a nossa mãe quanto a nós, seus filhos. Cada elogio dos
professores feito a um dos filhos, ele o repetia vezes sem
conta aos amigos. E como tinha a seu dispor os viajantes que
forneciam material para sua próspera fábrica de calçados, sempre nos
presenteava com objetos não existentes no comércio do Cariri: caneta-tinteiro,
caixinhas de madeira, caixas grandes contendo lápis de cor, aquarelas, com as
quais nunca sonhamos que existissem, pinceis e muitas coisas mais...
Aos
meninos, Aécio e Aristênio, desde cedo, papai atribuiu serviços obrigatórios:
cuidar bem dos cavalos, banha-los todos os dias, auxiliar o moço que cuidava do
nosso gado ajudando-o a preparar as rações, a conduzir, todas as tardes, o gado
da Malhada ( um terreno onde o gado pastava e que ficava depois do Riacho do
Ouro) ao curral. Terminado o serviço, nada de ficarem pelas ruas. O lugar deles
era na sapataria. Eu ficava mais em casa. A mim, muita coisa me era
proibida. “Isso é brincadeira de menino”. Uma chatice sem fim ...
Eram
mantidas em nossa casa três empregadas domésticas fixas, e mais uma auxiliar
para os dias de sábado. Divina, Regina, e uma outra que, com o
passar do tempo, foi sendo substituída por muitas outras até chegar a vez da Tiquinha.
Pode
parecer exagero, mas em nossa casa necessitávamos de muitas trabalhadoras. Uma
delas, a mais nova, era para os recados, servir café às visitas, fazer
compras. Divina reinava na cozinha como rainha absoluta. Minha mãe não
sabia, nem mesmo, coar um café. Nunca a vi lavando um prato sequer. Entretanto,
nunca compramos uma barra de sabão. Todo o usado em nossa casa era “fabricado”
por ela. A matéria prima: pinhão bravo( Jatropha molissima) ou tingui ( Magonia Pubescens) acrescidos de potassa.
Chegado o tempo do fabrico, se a matéria prima fosse tingui, já recebíamos as sementes,"as asas de borboleta" leves e lindas, desnudas de sua primitiva casca marrom. Por sua alta toxidade, proibidos ficávamos de nos aproximarmos das mesmas. Papai nos advertia: "qualquer terreno onde haja tinguizeiros, o gado não pode chegar perto. Essas asinhas de borboleta, como vocês chamam o tingui, são traiçoeiras. Matam qualquer animal que se alimente com as mesmas. Já se divertiram pegando as 'asinhas' com as mãos. Agora corram, lavem bem as mãos e fiquem bem longe desta armadilha danada."
Se o pinhão bravo fosse a matéria prima, nós não saiamos à noite para brincar. A família toda, inclusive papai, ficava ao redor da mesa ,aquela das costuras, descascando os pinhões e ouvindo as histórias, ditos e cantigas de nosso pai.
Era um momento prazeroso somente nosso. Não o dividíamos com ninguém. Previdentes, fechávamos a única porta de acesso, e nos deliciávamos com o trabalho-reunião.
Quando a quantidade dos frutos desnudos de suas escuras e grossas casacas afiguravam-se suficientes, parávamos o trabalho e esperávamos ansiosos a chegada do dia seguinte : o ritual do fabrico.
Tiguizeiro |
Tingui,asa de borboleta |
Tingui, fruto |
Sementes: asas de borboleta |
Chegado o tempo do fabrico, se a matéria prima fosse tingui, já recebíamos as sementes,"as asas de borboleta" leves e lindas, desnudas de sua primitiva casca marrom. Por sua alta toxidade, proibidos ficávamos de nos aproximarmos das mesmas. Papai nos advertia: "qualquer terreno onde haja tinguizeiros, o gado não pode chegar perto. Essas asinhas de borboleta, como vocês chamam o tingui, são traiçoeiras. Matam qualquer animal que se alimente com as mesmas. Já se divertiram pegando as 'asinhas' com as mãos. Agora corram, lavem bem as mãos e fiquem bem longe desta armadilha danada."
Se o pinhão bravo fosse a matéria prima, nós não saiamos à noite para brincar. A família toda, inclusive papai, ficava ao redor da mesa ,aquela das costuras, descascando os pinhões e ouvindo as histórias, ditos e cantigas de nosso pai.
Pinhão bravo |
Pinhão bravo, comum na caatinga. |
Frutos do pinhão bravo |
Sementes usadas no fabrico do sabão |
Era um momento prazeroso somente nosso. Não o dividíamos com ninguém. Previdentes, fechávamos a única porta de acesso, e nos deliciávamos com o trabalho-reunião.
Quando a quantidade dos frutos desnudos de suas escuras e grossas casacas afiguravam-se suficientes, parávamos o trabalho e esperávamos ansiosos a chegada do dia seguinte : o ritual do fabrico.
Siá
Maria, nossa lavadeira e ajudante da mamãe naquela preparo do sabão,
chegava cedo e tomava o café da manhã conosco. Nós a amávamos e a
respeitávamos. Foi uma figura que marcou nossas vidas e que nos ensinou, com
seu porte altivo, com seu esmerado trabalho a respeitar todos os trabalhadores,
independendo do tipo de trabalho realizado. Nossos pais nos chamavam a atenção
para o valor do trabalho em si.(toda nossa roupa era lavada por ela na nascente Santa Rita, e
da mesma exalava o cheiro gostoso de roupa limpa, posta a “quarar” ao sol e
secada ao vento ).
Potassa |
Auxiliava Siá Maria a mexer a pasta formada no tacho de cobre.
Marcava, então, a hora para “dar o ponto” no sabão. A casa toda cheirava um cheiro bom. Tia Rosinha implicava com aquela mania da minha mãe. Ela por sua vez retrucava com umas das suas boas piadinhas e, à tardinha, lá estava aquela “montanha” de sabão, pronta para ser depois repartida em pedaços. Esse ritual repetia-se sempre que necessário. Era só nosso e nos orgulhávamos dele.
Vovó Neném ( Bárbara Maciel Landim) não sabia onde a filha, tão avessa a cozinha, aprendera aqueles segredos relativos ao fabrico
do sabão. Ela nunca nos revelou e também nunca ensinou como calculava os ingredientes usados. Coisas da nossa mãe,Maria Iaci Landim Luna
Aide Luna Parente
Tendo ouvido sobre ERASMO SHALLKYTTON,
Busquei na internet e li sua linda poesia: TINGUI- UM BOM SABÃO DO SERTÃO
Transcrevo abaixo quatro estrofes da mesma. Escolhi aquelas que me transportam a nossa casa em Barbalha...
Tendo ouvido sobre ERASMO SHALLKYTTON,
Busquei na internet e li sua linda poesia: TINGUI- UM BOM SABÃO DO SERTÃO
Transcrevo abaixo quatro estrofes da mesma. Escolhi aquelas que me transportam a nossa casa em Barbalha...
"É somente aqui que há tanto tingui
No centro poleiro do meu sertão,
Fruto selvagem, malvado é daqui,
O vivo não come, morre em aflição.
Ela nunca estudou o que faz a química.
Tem o dom da alma na singela preparação.
Não conhece nem a cadeia de combinações,
Muito menos sabe o que é gordura vegetal.
Mexe e remexe, mexe e remexe,
E dá o ponto com uma bordoada na panela,
Que zine e zoa por todo o sertão,
Da minha Sambaíba de caxias- Maranhão.
No centro poleiro do meu sertão,
Fruto selvagem, malvado é daqui,
O vivo não come, morre em aflição.
Ela nunca estudou o que faz a química.
Tem o dom da alma na singela preparação.
Não conhece nem a cadeia de combinações,
Muito menos sabe o que é gordura vegetal.
Mexe e remexe, mexe e remexe,
E dá o ponto com uma bordoada na panela,
Que zine e zoa por todo o sertão,
Da minha Sambaíba de caxias- Maranhão.
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