5. Aécio na casa da bica
...e o retalho, primeiro filho, voltando a ser criança, "bagunçou o coreto" |
Quando os Landim Luna viram o Refúgio
do Guerreira, a Casa da Bica, pareciam sonhar de tão felizes. Finalmente
encontraram o lugar ideal para as reuniões familiares. Em todas as férias
escolares, lá estávamos, juntos, festejando a vida.
> Gustavo, Ive, Flávio, Bruno, Alexandre. |
A casa estava pronta, mobiliada, os
jardins lindos. Buganvílias coloridas da branca a roxa escura, da amarela
alaranjada á vermelha bordô. Todas em flor, o ano inteiro. As trepadeiras
floridas formavam um muro entre nossa casa e a antiga casa da Adília, agora
casa do caseiro, com uma grande castanheira esparramando seus galhos. Nossa
casa parecia de sonhos. Mas não tinha muro. O dinheiro destinado ao mesmo fora
usado na construção de muros de arrimo, e de tijolos para o piso, junto à bica.
> Yuri, Carlinhos, Julio, Chico Parente, Aristênio, R. Junior e Rômulo. |
O que poderia causar incômodo, foi
motivo de satisfação para os Landim Luna, que naquele mundo sem porteiras, como
o pai, começaram a aprontar. Arilo armou todos os meninos com
baladeiras (estilingues) e lhes prometeu alguns cruzeiros por cada frango ou
galinha que matassem dos vizinhos. Inocente, eu não sabia da trama. Amélia me
apareceu com uma galinha morta nas mãos. Informou-me que um dos meus sobrinhos,
a assassinara.
- Tens certeza Amélia?
- Mais do que isso, minha amiga, teus
sobrinhos estão atirando com baladeiras em nossas galinhas. Sabes quanto me
custa uma delas?
- Descansa, amiga. Tomarei
providências.
Arilo, como se não soubesse de nada, aproximou-se e perguntou o que acontecera. Após informado, propôs a ela que cuidasse
de “pelar”, tratar, temperar aquela penosa, que ele lhe pagaria o dobro do
preço. Mui contente, Amélia achou que fizera um bom negócio. Arilo, todo prosa, certo que me enganara, tentou "sair de fininho".
- Venha cá, seu malandro. Você mandou
as crianças matar as galinhas dos vizinhos?
- Eu? Estás maluca? Jamais faria tal
coisa. Sei como presas tua vizinhança. Mas que veio em boa hora esta bela
galinha, veio, e com farofa.
- Pensas que me enganas? Se mais uma
galinha aparecer morta na vizinhança, vais ver a que faço contigo.
Rindo, feliz, alegre pela vitória, chamou os das baladeiras e lhes pediu que suspendessem a “guerra”, por aquela
manhã. Quando a noite chegasse, seria melhor, mais fácil guerrear. “Matem apenas
duas galinhas, e me chamem. Não deixem tia Aide saber de nada”. E assim, ele e
Amélia negociaram as galinhas das redondezas. Não lhes faltavam galinhas
cozidas, farofas, pirão e verduras. Amélia, que vira um filão, aproveitou-se e
espalhou pelos vizinhos, que sairiam no lucro. “Eles nos pagarão em dobro,
pelos “tira- gosto”.
A casa sem muros, assim, pareceu-me perigosa. Mas meus irmãos diziam-me sempre:
Amélia, 2012 |
A casa sem muros, assim, pareceu-me perigosa. Mas meus irmãos diziam-me sempre:
- Não tenha pressa. Está tão bom
assim, a céu aberto. Para que queres murar o que sempre existiu sem muros?
E levavam-me na conversa. Meu amado se
divertia. Gostava de ver a euforia dos cunhados irmãos.
Num sábado, recebemos a visita do
Niondes, irmão de José Rômulo. Parente pediu-me que eu providenciasse uma boa
picanha para ele. Era um amigo querido.
Aécio, que não gostava de me ver, a
não ser me divertindo, conversando, perguntou-me:
- Que fazes tu, maninha, nesta
churrasqueira?
- Estou olhando uma carne, uma picanha
que Parente pediu para servir ao Niondes.
- Qual é o pedaço? Qual é a picanha
que olhas com tanto cuidado?
- É está aqui, irmão. É esta que está quase
no ponto, e que levarei com esta farofa para o amigo do meu marido.
- Mas que estás a me dizer? Este
pedaço é meu. Eu o guardei para mim. Nem penses em levá-lo a quem quer que
seja. Eu, Carlos Aécio, vim de Fortaleza para comer esta picanha com cerveja.
Niondes? Quem é Niondes? Eu não o conheço.
- Brincadeiras a parte, irmão. Brincadeiras,
agora, não. Ele está esperando e é esta a picanha. Quase no ponto, está. A ele eu a servirei.
- Pensas, maninha, pensas que a servirás. Já te disse: ela é minha. Nela nenhum Niondes tocará. Eu te garanto.
Meio amedrontada pelo que ele poderia
aprontar, tratei de virar a picanha mais uma vez e ele rindo, olhando-me,
balançava a cabeça dizendo:
- Tu, aqui, neste calor, cuidando de
carnes para um senhor, que nem teu irmão é. Deixa Chico pensar que Niondes
comerá esta belezinha. Minha maninha não vai servir carne alguma para ninguém,
só para mim.
- Não aprontes, eu te peço. Não
aprontes.
-Aprontar? E eu sou lá homem de
aprontar. Sou de agir. Verás agora. Aponte-me, novamente, maninha, qual é o pedaço tão saboroso,
que com tanto zelo cuidas para aquele moço?
- É este que estás vendo. Aliás, já
vou retirá-lo da churrasqueira e servi-lo ao Niondes.
- Hum, pedaço maravilhoso, macio,
gostoso. Deixa-me te ajudar.
E chegando bem para perto de mim
falou:
- Maninha, nesta casa ou em qualquer
casa, o melhor é para nos. Eu te disse e não acreditastes. Esta picanha,
somente eu a comerei.
Cuspiu na picanha por três vezes,
gargalhou e com aqueles seus olhos puxados me olhou, depois me beijou e me
disse:
- Aprendeste, maninha? Acho que
aprendeste. Ninguém é no mundo mais importante do que nós. E se Chico se
aborrecer, que se aborreça. Pegue este outro pedaço de carne de galinha do qual tanto gostas, e vamos juntos tomar nossa cerveja na bica. Rômulo, se
quiser, que venha fazer as honras da casa para o irmão. Eu e você vamos rir,
conversar, esquecer o resto do mundo.
No domingo, todo alegre porque só os
Landim Luna e Landim Leite se
confraternizavam, pediu-me que lhe fizesse uma boa pequizada:
- Daquela, maninha, daquelas que só
você sabe fazer. Com quiabo e maxixe e muito coentro.
- Cem pequis são suficientes?
- Sei lá? Agora que aprendi a cuspir
na comida, marcando meu território, podes fazer a quantidade que quiseres. Vou
tomar cerveja com pequizada. Depois vamos pensar o que faremos hoje. Hoje é dia
de missa, dia de domingo. Não vais á missa, maninha?
- Mas é claro que sim. Aqui perto na
capela de Nossa Senhora, padre Ágio celebra as dez horas. Vamos juntos?
- Tu rezas por mim. Vais com teu
marido e filhas, e eu fico cuidando do resto da família. Se a pequizada não
ficar pronta antes dessa hora, tua caseira cuidará de tudo.
- Não te preocupes, deixarei tudo no
ponto. Ariane ficará de olho na pequizada. Eu vou tomar meu banho e ir à missa.
Toma juízo irmão.
Nádia Aride, Ive e Martinha. |
À tarde, após o almoço, formamos duas
mesas de jogo de buraco debaixo das mangueiras. Aécio, quando acordou de sua soneca do meio dia e nos viu entretidos com baralhos, sentiu-se ofendido:
- Moro em Fortaleza. Viajo seiscentos quilômetros de
vinda, seiscentos de volta, para ficar com minha família e esta deixa-me
sozinho. Baralho!... Tenho horror a baralho, é um atrapalho, rouba as pessoas
da gente. Escutem-me, deixem estes baralhos, e vamos conversar.
- Deixe-nos terminar esta rodada, e te
prometemos não mais jogar. Tem paciência, irmão. Dormistes até agora, e ficas
reclamando. Vá tomar banho, irmão.
- Tomar banho! Agora mais esta. Que
desaforo é este? É o danado do baralho, ele é ladrão, ele vicia. Ele é um
monstro que separa irmãos. Tens dez minutos, irmã, nenhum minuto a mais, para
terminares com esta jogatina. Que sina, que coisa sem sentido ficar olhando
cartas, e deixar irmãos na mão. Dez minutos tens, e nada mais.
Meu marido rindo, chegou perto de mim
e segredou-me:
- O Louro esta furioso. Não tolera ver
vocês jogando baralho. Já tentei conversar com ele mas está irredutível. O jogo
quer acabar. Cuidado, ele pode aprontar.
- Ora mais esta. Deixa o Louro se
danar. Ele quer ser paparicado a todo instante. Nem parece ser gente grande.
Parente, rindo, disse-me mais uma vez:
- É melhor prevenir. O Louro está
horrorizado com vocês nesses baralhos. Ele, um meio vai arranjar, de com o
baralho, arrebentar.
Mal Parente se calara, ele chegou tão
mansamente que não o notamos com as mãos para trás, como era seu costume. Não
desconfiamos de nada.
- Aécio, estamos acabando a partida.
Está na hora do lanche. Vamos comer nosso bolo e depois dar uma volta até a
nascente.
- Fique a vontade, maninha, fique a
vontade. Não te preocupes comigo. Já arranjei um meio de ter meus irmãos perto
de mim longe deste maldito baralho.
E, num piscar de olho, derramou sobre
a mesa forrada, bem como sobre as cartas álcool que portava numa caneca e
acionou o isqueiro. Um fogaréu brotou do centro da mesa. Surpreendidos, nos
levantamos apressados.
- Agora joga cambada, joga. Pega as
cartas moçada, joga buraco , moçada! Ecim que se dane, Ecim que durma, Ecim que
se vire! Ecim se virou. Ecim acabou com a jogatina, Viva Ecim!
Parente desabou numa gostosa e contagiante
gargalhada. Levantamo-nos das mesas rindo da indignação de nosso irmão. Mas como
irmãos são um só, pegamos o Louro e passamos a trade e a noite tentando minimizar
sua indignação, de ter sido trocado pelo baralho.
> Jesus Luna e a filha Ariane na casa da bica. |
Todas as noites, a família esperava
que eu fizesse, após as vinte três horas, um caldo de ovos. Após o mesmo, parte
da família se recolhia, enquanto os do primeiro time, ficavam conversando.
Na Casa da Bica, nunca, quando das
reuniões familiares, a churrasqueira tinha descanso. Sempre havia irmãos e
irmãs acordados, conversando. Havia em nós o desejo de recuperar o tempo
passado distante uns dos outros. Aqueles que, vencidos pelo sono, adormeciam,
madrugavam e juntavam-se aos notívagos, sempre indagando:
- O que vocês conversaram? Por que não
me acordaram? Perdi o melhor que é ficarmos nessas conversas mais íntimas.
Naquele anoitecer, Aécio, combinando
com os demais irmãos, sobrinhos e claro, com os anfitriões, anunciou que todos
haviam se excedido em comidas e que um bom caldo de carne com ovos, seria mais
do que suficiente para o jantar. Fugindo à regra
estabelecida, naquela noite , ele e eu faríamos o bendito caldo e depois ele
cuidaria de lavar a louça, guardá-la, e limpar a cozinha.
Aide na Casa da Bica |
Quando nos reuníamos, para que todos
estivessem sempre livres, adotamos o hábito da divisão de tarefas: se as
mulheres cozinhassem o almoço, os homens cuidariam da limpeza das louças e do
jantar. Quando os homens fizessem o almoço, cabia as mulheres o jantar, e a
limpeza. Os caseiros, marido e mulher, estavam sempre presentes, nos ajudando
em tudo.
Thereza Denise na casa da bica. |
Rachel e Carlinha na casa da bica. |
Depois que fiz o caldo, com Aécio
sempre a meu lado, tomamos aquela refeição, ficamos conversando, brincando,
cantando. Uma bela reunião. Aécio, fez questão de reunir os pratos, canecos e
levá-los à cozinha, lavá-los e guardá-los. Na brincadeira, ficamos até as vinte
e três horas. Alguém falou:
- Uma bobagem fizemos. Acostumamo-nos
com um caldinho, a esta hora. Faz-nos falta o caldo da Ida, antes de nos
deitarmos. Com certeza, ela não fará outro. Ou será que fará?
- Com certeza, não. Já fiz minha
parte. Vou mais é me recolher. De há muito meu marido dorme, boa noite, para
vocês.
- Espere um pouco, maninha. Não vais
fazer nada. Nada, absolutamente nada. Eu te acompanhei, prestei atenção e
aprendi a fazer caldo igual, ou melhor do que o teu. Espere só mais um pouco.
Eu vou preparar e servir o caldo. Quero que, com tua exigência de boa
cozinheira, me digas se meu tempero é igual, ou melhor que o teu.
Concordei e aguardei o caldo. Passados
alguns minutos, veio ele com canecos grandes, cheios de um caldo quentinho e
cheiroso e nos serviu galantemente.
- Experimentem. Sintam o sabor. Sejam
honestos e me digam se não sou bom aprendiz. Degustem bem. Há diferenças entre
este, e o caldo da maninha?
- Hum, está muito bom. Aprendeste
rapidamente, irmão. Agora te cabe, por direito, fazer o caldo todas as noites.
- Está igualzinho ao da Ida. Muito
bom. É o caldo dela repetido. Ecim, és bom cozinheiro.
- Cabecinha de folha, acertaste. É
igual. É o mesmo.
- O mesmo? Como assim, Ecim?
-Como assim? Muito simples. Recolhi
todos os pratos, canecos e vi que, de barriga cheia, muita gente deixou restos
preciosos. Que perdulário, estragadores de comidas, somos nós! Então, como sei,
com certeza, que nenhum de nós é tuberculoso, leproso, infectado, juntei os
sobejos na panela. Ficou quase meia. Escondi-a na despensa. Agora pus os
sobejos a ferver. O caldo ficou ótimo. Cada um de nós, bebeu, alegre, o que
sobrou dos outros. Este saboroso caldo, é o que sobrou no prato, de cada um de vocês.
- Ecim, que coisa feia!
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