domingo, 10 de fevereiro de 2013




  21. Jesus Luna e suas presepadas


                                  

Atentos à colcha, retalhos sadios selecionavam.



Um  dos traços que caracteriza a família Luna, é o bom humor, o estar de bem com a vida, divertir-se e saber transformar tragédias em vitórias. Hoje, quando vejo Mary Stella, minha prima, setentona, filha da tia Rosinha,   selecionando piadas  de um calendário, que adquire não sei aonde nem como, guardando-as na bolsa para com as mesmas alegrar nossos encontros mensais, quando festejamos os aniversários das amigas da Turma da Amizade, recordo-me de meu pai, um ótimo contador de piadas, autor e ator de contos inimagináveis; divertindo-se e alegrando a vida dos moradores de Barbalha, sua cidade natal.


Sua  sapataria, a Boa Fama, era sempre frequentada por amigos que lá se reuniam pelo gosto de conversar com ele, para saber sua opinião sobre fatos da vida, vê-lo e o ouvi-lo. Jesus Luna era dessas pessoas de quem, se conhecendo, não se esquece facilmente. Era formidavelmente correto, justo, simples, amável e amigo e também crítico. Sabia usar a criticidade criativamente, transformando em piadas as “maluquices”, egoísmos, ganâncias, crendices, orgulho doentio das pessoas. Era tão finamente crítico que se ria de si mesmo, e fazia Barbalha rir com ele.


São muitas as suas “presepadas”, como são inúmeros os passeios que preparava, amorosa e criativamente, para sua família.




21.1  Jesus Luna e a mulher mal amada


                               
No mundo dos retalhos amorosamente costurados,  não cabia aquele afeito
a picuinhas, a falatórios, a invejas e ciúmes bobos. Melhor seria descartá-lo.



Havia em Barbalha, mais ou menos nos meados do século XX, uma rua na qual se  destacava uma casa tida como mal afamada. Sua proprietária oferecia aos homens: carteados, mulheres lindas vindas de outras cidades, muita música, boa comida e muita bebida alcoólica. Na mesma rua da “pensão” morava uma senhora que não fazia outra coisa a não ser falar mal das pessoas. Permanecia, grande parte de seu tempo, observando se os homens bem casados de Barbalha,  passavam por ali.


Em um certo dia, meu pai em companhia de seu amigo e compadre, Ercílio Sampaio, passou à sua porta. Buscava  resolver pendências de um prédio seu, ali localizado. Cumprimentou a citada senhora e continuou seu caminho.


Tão logo os perdeu de vista, a encrenqueira trocou de roupa, pegou uma das  suas indefectíveis bolsas de mão


e dirigiu-se triunfante à nossa casa. Sentando-se em uma das cadeiras sempre dispostas diante da máquina de costura de minha mãe, derramou uma procissão de sandices:


-Pensas que teu marido te é fiel? Ledo engano! Se  saíres agora, o encontrarás jogando baralho, bebendo cerveja, e com uma das “meninas” no colo.


Mamãe não demonstrou que acreditara nela. Estava desconfiada. Precisava  inteirar-se daquela notícia desagradável. “Será que ele fez isso comigo?  Não é possível. Mas pode ser". Levantou-se da máquina,  fechou-a e foi ao banho para esfriar a cabeça.


Papai, diariamente, saía da sapataria por volta das quinze horas, comprava pão quente na padaria de seu Pedrinho  e vinha tomar café conosco. Conforme a época, o esperávamos com canjica, pamonha, bolo de chapéu, tapioca e beiju. Naquele dia não foi diferente. Quando descia pela “ladeira da farmácia de seu Alfredo” , encontrou a mal amada que o olhou com olhos de rifles.

Imediatamente percebeu que a mesma viera de nossa casa e que desassossegara mamãe. Votou à  sapataria e resolveu que aquela senhora não poria mais os pés em nosso lar. Antes das dezessete horas entregou as chaves de sua loja , a Boa Fama, a seu  gerente. Chegando à nossa casa, adentrou-a  pisando leve, a testa franzida, muito triste e com um ar de deprimido.


Maria Iaci que o esperava para passar aquela história a limpo, vendo-o naquele deplorável estado, indagou:


- O que houve, Jesus, por que  que estás tão abatido?


- Maria, Maria, não posso te dizer. Com o gênio que tens, não ficará uma só telha em nossa casa. É muito sério. É sério demais, o que está  acontecendo, para eu te contar.


- Vamos lá, homem, conta-me tudo de uma só vez. Estou aflita, agoniada. Não percebes?


- É que envolve outras pessoas: uma amiga e freguesa tua, a quem muito presas e seu marido, um grande amigo meu.


- Agora tens que me dizer o que está acontecendo. Não aguento mais esse suspense. Abre tua boca, Jesus, e  me diz de uma vez o que te aflige tanto.


- Pois bem, já que insistes, contarei. Há uma senhora tua amiga que resolveu me perseguir. Hoje mesmo não pude vir para nosso café porque ele estava como “ um às de paus”, empertigada,  olhando para mim.


Até na missa, a dita cuja  escolhe um lugar do qual  possa me ver. É um grande tormento o que estou passando. Estou muito perturbado. O marido  dela é um homem bom e, como sabes bem, um amigo a quem muito preso.

- Que sem vergonha! Ela sabe que és casado, e bem casado. Sabe que es amigo de seu marido e busca te conquistar? Que mulher sem compostura! Quem é ela, Jesus. Preciso saber quem é essa "bisca".


- Recuso-me a pronunciar seu nome. É esposa de um amigo meu e, sabes bem, respeito e acato os amigos dos meus amigos. E em se tratando de suas esposas, estas, são sagradas para mim.

- Tens que me dizer agora mesmo quem é esta tal mulher. Se calas e a acobertas é porque tem "boi nesta tuba". Vamos lá, homem, desembucha de uma vez.

- Prometi a mim mesmo  nunca pronunciar o nome da tal criatura. Mas conhecendo-te, como conheço, vais revirar o mundo até descobrires quem é ela. Então, sem pronunciar-lhe o nome, ta descreverei. Se conseguires "resolver a charada", juro-te que ficarei muitíssimo aliviado.

- Conta de uma vez. Deixa de arrodeios.

-Pois bem, a criatura, a mulher que me persegue é muito ciumenta, magrinha, baixinha, ligeira no andar, conversadeira, fala alto e sempre gesticula exageradamente. Seus vestidos são todos de linho ou de seda pura, e da melhor existente. É  muito rica e exigente. Está sempre com brincos grandes de ouro pendurados nas orelhas. Nunca sai de casa sem uma bolsa debaixo do braço. Quando entra nas lojas os balconistas ficam apavorados. A mesma coisa acontece em nossa sapataria. É cliente tua e nunca se mostra feliz com os vestidos que para ela costuras.



-Não é possível, Jesus. Não é possível. Esta mulher esteve hoje aqui em nossa casa dizendo horrores de ti.

- E depois foi para nossa sapataria. Ela me olhava com olhos de jacaré.

                                                                           



- Nunca mais ela porá os pés aqui. Que boba fui ao dar ouvidos a seus falatórios. A danada só se sente bem falando mal das pessoas. E, pensando bem, vive a me dizer que és infiel a mim. Que criatura abominável!


Chamando a moça dos recados, mamãe entregou-lhe um embrulho contendo os tecidos da mal amada, que entendendo que exorbitara, nunca mais voltou à nossa casa.

Aliviada pela cara ausência da ex-amiga, minha mãe sorria, respirava fundo e mil vezes repetia: "a bruxa encrenqueira saiu de vez de nosso convívio levada por sua vassoura de maldades, fuxicos e mentiras. Que se vá e não tente retornar".

                             

Papai, que arrancara de nossa mãe a promessa de não passar a história adiante, ria-se aliviado e agradecido. Conseguira fazer a tão desejada e necessária  assepsia em nossa casa".
                                                          
                                                                 
     





21. 2 - A  Pensão de  seu  Eliodoro
                                     
                              ...e percebendo quão complicada era, livrou-se daquele 
                                    retalho para sempre.


Bem em frente à Praça Trianon, em Barbalha,( hoje com um novo nome) ficava a pensão de seu Eliodoro. Lembro-me bem da mesma não só por ser próxima à sapataria do meu pai, mas também porque Maria Serpa, minha colega de sala de aula no Grupo Escolar Martiniano de Alencar, ali residia.
                                                  
Sapataria Boa Fama- Primeiro prédio à esquerda.
Pensão de seu Eliodoro- próxima a segunda árvore
também à esquerda

                                                                              
Rua do Vidéo. Praça Trianon à esquerda.
Meados do século XX.



Doutor Leão Sampaio, médico barbalhense,  por sua competência aliada à bondade, à fina educação e carismaticidade, atraia à nossa cidade uma multidão. Pessoas advindas de vários lugares do Brasil visitavam Barbalha em busca do taumaturgo, na certeza  da cura. Na pensão de seu Eliodoro, quase sempre, se hospedavam.

Sem que nos dessemos conta, a terra dos verdes canaviais, passou a abrigar uma população flutuante. Da mesma, algumas pessoas atraídas não só pelo atendimento ímpar do médico, como também pela hospitalidade, traço característico dos barbalhense, escolheram fixar residência  conosco, em nosso Cariri. Outras, passavam temporadas. Estas buscavam abrigo seguro na já mencionada pensão. Assim aconteceu com uma moça que resolveu permanecer em Barbalha "por um tempo" e gostando, foi se demorando, fazendo amizades. Era dependente de medicamentos. Não sabia viver sem seus comprimidos. Suas amizades,  quase exclusivamente masculinas. Não frequentava nossa Igreja. Era avessa a religiões. Entretanto, quando tinha notícias de alguma cigana, benzedor, benzedeira, cartomante, adivinhador, corria atrás. Acreditava piamente em tudo que diziam. Partilhava suas esdrúxulas  experiências com papai e seu amigos, quando das conversas na sapataria. Nós “cismávamos” com ela. “Moça velha extravagante e abusada”, assim a classificávamos, irreverentemente.

Papai muitas vezes nos exortou e exigiu que a respeitássemos. "Se estivessem no lugar dela gostariam de ser respeitados". " Não posso entender essa aversão que sentem por essa pobre criatura"." Parece que nunca entenderão o significado de ser um verdadeiro cristão".  "É melhor deixarem de lado a  Cruzadinha Eucarística; estão agindo como incrédulos".  "De que adianta acordarem-se para a missa das cinco horas no Rosário, se vivem implicando com  uma moça que nem sabe que existem"?

Mamãe fazia de conta que não ouvia nossas conversas acerca da moça-velha. Para ela a "coitada" era uma sabidinha que buscava a companhia agradável de nosso pai bem como a de seus amigos. Uma solteirona que não fazia mal a ninguém, só a si própria. Entretanto, nossos pais não  nos convenciam de que aquela mulher era apenas uma sofredora, a mais, no mundo.

Com o passar dos meses,  papai ficou incomodado com o que chamava de “lenga-lenga, lero-lero, da velha donzela".. Esperou pacientemente, o dia, a oportunidade, a hora certa de livrar-se de sua incômoda presença.

A ocasião chegou quando, metendo-se numa conversa entre amigos, a solteirona estabanadamente, agrediu com palavras torpes um dos amigos. Indignado com sua postura, papai pensou, meditou e, por fim achou um meio de manda-la de volta à sua cidade. Antes, acertou com os amigos que, por três dias, nenhum deles o visitaria em sua sapataria. Os amigos apostaram que, daquela vez,  não conseguiria fazer a "limpeza" da cidade.


Barbalha- Ceará. Meados do século XX .



A moça-velha estranhando não só o silêncio mas também a falta da roda de amigos na sapataria, indagou a meu pai:

- O que está havendo, seu Jesus? Parece que os amigos o abandonaram.

- Não. Eles não me abandonaram. Estou...Ó  desculpe-me. Não posso falar sobre isso com ninguém.

- O senhor está estranho, seu Jesus. O que é que está acontecendo?

- Nada, moça. E, por favor, va para tua pensão. Não posso falar contigo nem com ninguém.

- Não podes falar comigo?

- Não. Não posso. Nem contigo, nem com ninguém, como já te avisei.
Jesus Cruz Luna- Barbalhense


Saiu da sapataria deixando-a com os vendedores e clientes. A  donzela incomodada com a grosseria de Jesus Luna, perguntou ao gerente se o patrão estava doente. Este, gentilmente, lhe passou a informação de que seu Jesus avisara que estava de retiro. Fazia um retiro de silêncio para repor suas energias espirituais. Aquela informação mexeu com a moça-velha que, vendo meu pai sentado em um banco da praça, sozinho,  dele se aproximou indagando:

- O senhor, seu Jesus, é um clarividente? Responda-me, por favor. Estou agoniada. Preciso de ajuda e o senhor nunca me disse que adivinhava as coisas. Fale comigo seu Jesus.

Papai  levantou-se do banco. Com a mão fez sinal de silêncio e voltou ao trabalho. Três dia depois a velha donzela o procurou. Queria  conversar sobre sua vida, suas crenças, sobre o desejo imenso que sentia de  livrar-se de um peso enorme que carregava dentro de si. Papai, paciente e atentamente a escutou e  disse-lhe que "diagnosticara"sua doença: um peso enorme no estômago. Sentia que alguém muito malvado pusera-lhe um mau olhado, uma mandinga, ou uma maldição. A moça riu contente. "É verdade, seu Jesus. Eu sabia, eu sabia, eu sabia que aquela mulher medonha me pôs um mau olhado. Agora que o senhor acabou seu retiro, ajude-me por favor.” Papai pediu-lhe calma. Disse-lhe que, com certeza, a curaria mas  necessitava  que ela acatasse e guardasse somente para si, tudo aquilo que  lhe dissesse e ordenasse que fizesse. Ela rendeu-se. Pegou uma caderneta e um lápis de sua bolsa pediu que "o amigo" explicasse, detalhadamente, o que precisava fazer para livrar-se da "macumba". Muito sério ele elencou:
- Vá à loja de tecido da Casa Sampaio e compre meio metro de cambraia de linho, do tipo mais fino e puro que encontrar. Exija que o vendedor desfaça toda a peça e retire o pedaço do começo da mesma. É necessário que o tecido esteja escondido de olhares cobiçosos.
- Compra também uma agulha de costura de mão, nº 9, de um pacotinho daqueles pretos lacrados, um carretel de linha branca bem fina , uma tesoura também nova, virgem. Um copo de cristal. Se não encontrares de cristal, de vidro serve. Importa que nunca tenha sido usado.
- Procura uma galinha poedeira e  compra-a. Leva tudo para teu quarto e quando não houver hóspedes ou movimento na cozinha, vá à minha loja e eu te seguirei. Vou começar a trabalhar por tua cura para que possas   retornar à tua casa.

A donzela velha fez tudo exatamente como ele ordenara. Quando à noitinha a pensão esvaziou-se, chamou meu pai. Este, com uma sacola na mão, acompanhou-a até a mesa da sala de jantar, forrou-a com uma folha de papel branco assegurando nunca ter sido vista por estranhos. Após arrumar a cambraia de linho sobre o papel, com a tesoura virgem, cortou da mesma um quadrado perfeito. Entregou-o a moça solicitando-lhe que ao se preparar para dormir, pusesse o mesmo sobre seu estômago.  Na manhã seguinte, quando acordasse, dobrasse o quadrado e o deixasse sobre sua cama. Fizesse sua primeira refeição em silêncio e retornasse imediatamente ao quarto e dele não saísse porque tinha um trabalho importante a realizar. Com a agulha e a linha compradas, procurasse  tecer uma bainha perfeita, no quadrado da cambraia.

                                                 


A ninguém confiasse o segredo nem, tampouco, permitisse que alguém o visse. Melhor seria solicitar que suas refeições fossem servidas em seu quarto.  Com relação à galinha, a pusesse também em seu quarto sob um balaio e ficasse atenta. Logo que a mesma botasse um ovo, o apanhasse com cuidado e o envolvesse na cambraia que restara. Quando embainhasse o quadrado ,  chamasse-o imediatamente.
                                                                   

Durante dois dias seguidos ela não apareceu na sapataria. Sua ausência  bem-vinda pelos amigos e por todos que a conheciam, foi celebrada com alegria.

Terminada a bainha, ela buscou meu pai que, com um pires na mão a acompanhou. Pediu-lhe que se retirasse enquanto ele e um amigo possuidor de extraordinária força vital, arrumariam tudo de modo a que, em pouco tempo, ela ficasse livre da força negativa que a acompanhava.

Quando a velha donzela retornou ao quarto, ao lado de sua cama encontrou uma mesinha baixa forrada com o restante da cambraia de linho e sobre a mesma, algo envolto no quadrado que embainhara. À sua pergunta,  Jesus Luna respondeu que ali estavam: o copo que comprara cheio de água pura colhida na nascente do Bom Jesus do Caldas, com um pires branco sobre o mesmo, e sobre este o ovo que apanhara da galinha. Exortou-a que não tivesse medo porque sua cura se daria através de tudo que arrumara e das orações que ele e o amigo vidente  fariam sobre a “arrumação”, durante uma semana. E que após aquele tempo, se o “trabalho” desse certo, ela deveria voltar livre para sua casa, para sua cidade. Disse-lhe ainda que permanecer no lugar onde encontraria a cura, seria perigoso. A maldade poderia voltar, e com mais força. Seria bom que ela começasse a arrumar sua bagagem. Acrescentou ainda: “ninguém, nem mesmo o dono da pensão, pode saber o que está acontecendo. Por precaução, é bom que vás à Juazeiro, e  compres tua passagem de trem porque depois que o peso sair , precisas deixar nossa Barbalha, imediatamente. Pelos cálculos, tal se daria, em oito dias.”

Aos amigos ele nada falou do que planejara. Com o parceiro da “presepada”, dividiu as “tarefas": arranjaram um ovo e, cuidadosamente, nele fizeram um furinho. Através do mesmo, com o auxílio de uma seringa, aspiraram seu conteúdo. Uma trabalheira. Depois, enquanto um distraia Satírio,

 o barbeiro número um da cidade, o outro juntou um pouco dos fios de cabelo espalhados pelo chão da barbearia e,  pacientemente, encheram a casca do ovo com os  mesmos, adicionaram tinta vermelha e taparam o furinho com  gesso. Demoraram-se muito na execução desta  tarefa. 

Diariamente, em hora previamente determinada, Jesus Luna e o amigo aproximavam-se da mesa no quarto da donzela, pronunciavam palavras ocas acompanhadas de gestos com as mãos e afirmavam  à interessada que tudo estava sob controle. Sua cura se daria. 

Passados sete dias, papai após perguntar  se  acertara as contas com seu Eliodoro e se fizera suas  malas, pediu que a donzela  comprasse um lençol branco e uma barra de sabão de coco. Tomasse um demorado banho,  lavasse  bem a cabeça usando o sabão virgem adquerido. Após jantar, deitasse em sua cama porque ele e o amigo percebiam que a cura  aconteceria pela madrugada que se avizinhava.

À noite os dois chegaram ao quaro da donzela que deixara a porta entreaberta, levando consigo o ovo preparado. Aproximaram-se  da "arrumação" balbuciaram  palavras loucas e, sorrateiramente, trocaram os ovos deixando sobre o pires coberto pela toalha de cambraia de linho, aquele pelos dois preparado. Desejaram-lhe uma noite feliz e  retiraram-se proibindo-a de sair da cama. Se sentisse necessidade de ir ao banheiro, o fizesse com cuidado sem tocar na mesinha aonde sua cura se daria. Recomendaram-lhe que pela manhã, saísse do quarto e o fechasse bem, à chave, para que ninguém pudesse  os olhos sobre aquilo que estava envolvido pela cambraia de linho.

Por volta das quinze horas, os dois dirigiram-se à pensão. Adentraram no quarto da donzela que já os esperava. Balbuciaram novamente palavras ocas. A moça acompanhava atentamente todos os seus gestos acreditando que ambos possuíam  forças poderosas, capazes de cura-la.

Acabada a encenação, Jesus Luna  pediu à donzela que, cuidadosamente, pegasse o ovo sobre  o pires e o transportasse enrolado na cambraia tal qual estava com muito cuidado. Silenciosamente procurasse um lugar onde houvesse uma árvore, fechasse os olhos, desembrulhasse o ovo e o jogasse com muita força ao chão dizendo "vai-te embora, maldição".  Só então abrisse os olhos. Se o ovo estivesse limpo, ela continuaria doente pelo resto da vida, mas se encontrasse alguma coisa diferente, extravagante ou nojento, não gritasse ou  ficasse assombrada. Envolvesse tudo na toalha que fizera e os chamassem para que vissem o que acontecera.

Mais ou menos uma hora depois, resfolegante, triunfante ela procurou “os amigos” e lhes mostrou a sujeira: cabelos brancos, pretos, castanhos e loiros misturados com "sangue"e a casca do ovo quebrado. "Tudo isto saltou do ovo quando o atirei ao chão  à sombra da árvore", afirmava triunfante




Na mesma tarde pegou sua bagagem e aliviada, livre de doenças, deixou nossa Barbalha.

Aos amigos, papai  recusou  contar o que fizera. Anos depois recebeu uma carta da donzela agradecendo-lhe por  sentir-se bem, feliz e até com um noivo. Só então, lhes contou toda a presepada que aprontara.

                                                 



         21.3 Afilotando


De uma beleza exótica, a moça atraia olhares cobiçosos dos rapazes.



Jesus Luna, quando solteiro, morava em Juazeiro do Norte onde trabalhava com  o cunhado, Antônio Mariano Sobrinho, casado com sua irmã, Josefa de Luna Mariano, no comércio de calçados.

Residia numa casa, A REPÚBLICA, em companhia de outros rapazes solteiros trabalhadores, dentre eles: Vicente Teixeira, João Chita Fina e Francisco Vitorino Luna, seu sobrinho, estudante de medicina em Belém do Pará, mas com “lugar reservado” na decantada REPÚBLICA. Outros rapazes faziam parte do grupo. Embora meu pai nos tenha relatado, muitas vezes, suas aventuras ocorridas naquela cidade, não guardei os nomes de demais amigos seus.        
                                             
Jesus Luna e Vicente Teixeira/ 1935
                         
Otoniel Vitório da Cruz, meu avô paterno, casado com Ângela de Luna Alencar, foi professor primário e agricultor tanto em Barbalha como na localidade Farias, hoje parte do distrito de Arajara. Exigente não só com os filhos, mas também com os alunos no que se referia à escrita e à linguagem, educou uma prole que falava e escrevia bem, de porte e comportamento exemplares. Minhas tias paternas, a exemplo da mãe, andavam eretas e mal tocando no solo. Nelas como nos irmãos, as cantigas cantadas na casa do Farias, onde os  Cruz Luna nasceram, nove mulheres e seis homens, parece-me haver deixado marcas de leveza, de frescor, de remoçamento que, com raras exceções, acompanharam os quinze, até seu último suspiro.

Jesus Luna, meu pai, não fugiu á regra. Nele, num recanto de sua  alma, havia um lugar em que a música nunca tinha fim, nunca parava, principalmente as valsas.
                                             
                                                         
                                                                                 
                                                                           

Estas o marcaram tão profundamente que recebeu das cidades centro do Cariri de então: Barbalha, Missão Velha, Juazeiro e Crato a alcunha de “o pé de valsa”. Sentia-se eufórico com o apelido porque se auto avaliando, percebera caber-lhe bem, o “novo nome”. Fazia jus ao mesmo, embora dançasse tango e outros ritmos com maestria. 




Nos bailes, alguns maridos solicitavam aquele moço bonito, educado, bonito, muito bem trajado, de futuro promissor, que volteava lindamente pelo salão, que com suas esposas valsasse. Os noivos também lhe pediam o favor de danças com suas amadas,. Foi somente quando  sentiu-se “obrigado” a dançar sem convidar a dama pretendida, que lhe pesou o, antes apreciado, apelido.








Em nossa casa, após o almoço, nós seus quatro primeiros filhos: Aécio, Aide, Aristênio e Aride, Após o almoço, repousávamos em seu quarto, em sua cama, em sua companhia e ouvíamos suas histórias, seus conselhos, as cantigas cantadas na casa do Frias ou a leitura de  algo interessante, no seu conceito, importante para nós, para nossa formação.

Nosso primeiro contato com a História do Brasil se deu nesses encontros quando, atentos, ouvíamos a leitura que fazia para nós, do livro de Vereato Correia, História do Brasil para Crianças.

Em um desses inesquecíveis encontros, ao nos prometer que nos ensinaria a dançar, contou-nos o seguinte:

"Nós rapazes moradores da REPÚBLICA”, estávamos em um baile elegante, em Juazeiro, animado por uma excelente orquestra que viera de Recife ou de Fortaleza, não me lembro bem, quando o João meu amigo disse-me, meio cabreiro, que aquela história de eu ser o “pé de valsa”, causava prejuízo à “comunidade republicana”. Falou-me, mais ou menos assim:

- Jesus, não te deixes mais alugar para dançar. Estás no prejuízo e nós, teus amigos, também.

- Como posso causar prejuízos à comunidade, João? Se há aqui alguém que pode choramingar sou eu que quase não posso dançar com quem me apraz. Entretanto, as damas com as quais danço, são exímias bailarinas. Então, como não tenho noiva nem namorada, prejuízos, não alego ter. Além disso, gosto de dançar com quem aprecia a música e, por deliciar-se com a mesma, interpreta com o corpo aquilo que lhe inspira. Dançar é algo que somente quem ama a vida,quem é musical, sabe fazer.

- Não sabes o que perdes, amigo. Há moças lindas hoje, neste baile. Não viste nenhuma delas.

- Então, amigão, demos uma volta pelos arredores do salão e descubramos estas maravilhas a que te referes.

Numa dessas voltas vi uma moça de tez amorenada, de cabelos negros e olhos de cor indefinida, ora verdes, ora da cordo céu. Uma  criatura lindíssima.




- E o que é tez, papai? 

- Bem eu até poderia te dizer qual o significado da palavra, Aécio, se nesta casa não houvesse “um pai dos burros”. Espero aqui enquanto pegas o dicionário e depois continuarei com a história.

- Eu prometo, meu pai que assim que terminares a história pegarei o dicionário e procurarei o significado da palavra. Creio que deve ser algo relacionado com o jeito de ser da moça bonita. Continue com a história, papai.

- Seja como propões.
Quando vi aquela linda moça, além de sua beleza percebi que não olhava nos olhos das pessoas. Acompanhada de apenas uma meninota, mantinha os olhos azuis ou verdes  baixos, mirando o chão. Encostei-me num pilar que havia ali por perto e olhando-a perguntei ao João.

- Quem é aquela senhorita que está naquela mesa em companhia de uma quase menina?

Ah! Acordaste camarada? Olá pé de valsa, voltaste ao planeta terra? Aquela senhorita é a causa de nosso alvoroço. Quase todos os rapazes convidaram-na para dançar entretanto, ela não dançou com ninguém.

-E Tu, João, já a convidaste para contigo dançar?
- Confesso-te que não. Aquela senhorita linda muito encabulada, que não conversa com ninguém, confesso-te, mexeu comigo. Minhas pernas tremem quando  penso em dançar com ela. Tenho medo que me recuse a dança. Percebi, entretanto, que ela segue, com discrição, teus rodopiando pelo salão, para espanto meu. E até acompanha, sorrateiramente teus volteios. Olha-te, sorri e mexe  com os pés e as vezes com as mãos, acompanhando-te de acordo com compasso da valsa. Creio que dança divinamente. Suspirou fundo quando batias palmas após a última valsa que dançaste com a esposa de teu amigo. Foi por isso que saí a tua procura. Quando a orquestra tocar a próxima valsa, convida-a para dançar contigo.

- Isso que fazes agora, chama-se chantagem. Não, eu não a convidarei, por mais que me implores. Cuida de tuas pernas bambas e, antes que outros consigam, convida tua musa. Há outros de olhos nela. Toma coragem. Ficarei aqui para te dar apoio.

Mal a orquestra começara uma nova valsa, meu amigo dirigiu-se à moça. Não ouvi o que conversaram. Meu amigo, pálido, puxou-me pelo braço e cochichou em meu ouvido:

- A de olhos azuis-esverdeados só dança afilotando.

- Como?

- Afilotando, Jesus. Afilotando. Quando a convidei, desculpou-se e disse-me que não podia comigo dançar porque seu pai ordenara-lhe que só dançasse afilotando. Que coisa mais descabida é esta, Jesus? Nunca ouvi esta palavra em minha vida. Que verbo é este meu amigo?

- Ora, o verbo dos enamorados de pernas bambas e ouvidos surdos. Estás tão tocado pela donzela bela, que não escutaste  bem o que a mesma falou.

- Então, convida-a, e saberás se minhas pernas trêmulas roubaram-me a audição.

- Já te garanti que não cederei à tua chantagem. Procuremos o Francisquinho Luna. Ele, assim como eu, dança bem. A moça deve tê-lo visto dançando. Se é boa na dança, aceitará seu convite.

Fomos em busca do Francisquinho, teu padrinho, Aécio. Ele, todo prosa, aceitou a proposta que lhe fizemos. Quando a orquestra iniciou o toque de uma valsa, convidou a moça para consigo dançar.

Passando a mão pelos cabelos, meio sem jeito, querendo rir mas sentido-se derrotado, disse-me:

- Meu tio, João tinha razão. A moça de olhos verdes ou azuis só dança afilotando. Saiamos um pouco daqui, analisemos tudo o que falamos e ouvimos e tentemos decifrar esta charada. Vamos. Estou encucado.

Afastamo-nos um pouco das luzes e do barulho do salão. Os da REPÚBLICA e outros amigos achegados, ao nos verem sérios e afastados do lindo baile, a nós se juntaram. Após conferência, resolvemos que não passaríamos a história adiante e que  sortearíamos  os nome de cada um dos presentes formando, assim, uma fila ordenada de pretendentes, de rapazes simpáticos, de bem com a vida, para convidar a bela desconhecida a dançar. Coube-me o quinto lugar. Um a um os amigos a convidaram e dela receberam a mesma resposta." Desculpe-me, moço, prometi a meu pai que só dançaria afilotando".

Chegou minha vez. Acheguei-me à moça e convidei-a com educação e quase sussurrando:
- Senhorita, dá-me a honra de dançar esta linda valsa comigo.
Ao que prontamente me respondeu:

- Desculpe-me, moço, não posso dar-lhe esta honra, prometi a meu pai que só dançaria afilotando.

- Prometeste, senhorita, então é justo que cumpras o prometido.

- Obrigada, moço, por não insistir e ajudar-me a cumprir a promessa  feita a meu querido pai, de só dançar afilotando.

- Não há nada a agradecer senhorita. Meus amigos haviam-me informado desta sua decisão de só dançar afilotando. Então, como danço muito bem por conhecer todos os passos da valsa, posso, sem medo , garantir-lhe que, sem  erros, afilotarei com a senhorita. Vamos afilotar, senhorita?

A linda moça parecia uma fera ao levantar-se da cadeira. Levantou a mão direita como quisesse me esbofetear.Então, quase gritando, falou de um fôlego só:

- Estás bêbado ou louco, seu irresponsável? Que pensas tu e teus amigos nessas cabeças bestas e sujas? Retira- te. Busque sua mãe e afilote com ela que, aliás, deve sentir muita vergonha de ter te trazido á vida. Afilotar? Que homem nojento és. Meu pai é Coronel na Zona da Mata em Pernambuco. Sou sua única filha. Ele veio à Juazeiro á negócios e, à muito custo, consegui que me trouxesse consigo. Recebemos o gentil convite para este baile e o aceitamos. Meu pai sentindo-se mal, não pôde vir comigo. Permitiu, porem, que eu  viesse acompanhada de minha prima Filomena e de seu marido. Mas por eu não ser conhecida aqui nesta cidade, e temendo que algum irresponsável e maldoso como o senhor, dançasse comigo, arrancou-me a promessa de dançar somente quando a Filó, que conhece muito bem esta terra  e seus habitantes, me fizesse o sinal de que o moço que me convidasse para dançar, fosse sério e de confiança. A Filó foi chamada as pressas para resolver um probleminha em sua casa que fica logo aqui em frente, e deixou-me em companhia desta pajem que o senhor vê. Creio que estará aqui em poucos minutos. Não a esperarei. Estou furiosa. Acordarei meu pai e contar-lhe-ei a proposta safada de afilotar, que o senhor me fez. Então veremos se continuará importunando com sua cabeça suja, as moças decentes que visitam esta cidade.Creio que o senhor vai ter o que merece: um beijo dado por um rifle bem entre seus olhos que tiveram o topete de avaliar-me e me depreciar. O senhor afilotará com sete palmos de terra sobre seu imundo corpo.

E saiu apressada. Fiquei pasmo.Resolvemos sair da festa. Como o dia seguinte era um domingo, fomos à Barbalha e não comentamos o ocorrido com medo dos cabras do Coronel. Como não sabiam nossos nomes, por mais que nos procurassem, não nos encontrariam. Mesmo assim, por precaução, permanecemos uma semana entre Barbalha e Missão Velha.

Por esta e por outras tantas mais, é que eu faço com os de minha casa o mesmo que meu pai fez conosco: nunca permitindo que cometam cacófatos.

- Papai, esta história é de verdade ou o senhor inventou tudo?

- É verdade verdadeira. Por causa de um cacófato vocês quase não nasciam.

- Ora, o que temos nós com a história?

- Têm muito. Sem o pai, os filhos e filhas não nascem.

- E sem mãe, é que não dá mesmo.

- Pois é, cuidem para não falarem errado. Quase que um coronel me mata porque a filha usava mal as palavras. Como eu poderia saber que aquela mocinha bonita que afirmava a todos os rapazes que só dançaria afilotando, queria, realmente dizer que dançaria somente quando a Filó, diminutivo de Filomena, estivesse presente. Daí porque quando dizem tá bem papai, eu fico indignado. Engolem o Es. Aprendam a pronunciar bem as palavras para que não passem vergonha como aquela de olhos azuis-esverdeados.

- Esta história é verdadeira  de verdade?

- É totalmente verdadeira. 

-Se é verdadeira, o senhor não nos contou tudo. E a moça dos olhos que mudam de cor, o senhor alguma vez encontrou-se com ela?

- Não. Nenhuma vez. creio que mora em Pernambuco. Mas, porque tanto interesse na moça?

- Ora, nunca vi ninguém com olhos que mudam de cor. E se ela casou e  teve uma filha com olhos que mudam de cor? Eu ia gostar de dar uma dançadinha
com ela.

- Es ainda um menino, Aristênio. E já terminou nosso tempo. Volto para meu trabalho e vocês para os estudos.

- Antes, vamos cantar aquela cantiguinha sem graça, A Casa Amarela, para a gente se lembrar da moça afilotando. 
- A cantiga dos cacófatos. É bom mesmo. Foi esta cantiga que me fez ter cuidado em não cometer cacófatos.

- Então comece logo, papai, antes que dona Iaci venha nos lembrar as horas.

Fui à casa amarela
Visitar uma menina.
Quando ela canta ela treme,
Quando ela treme, ela trina.
Quando ela canta ela treme,
Quando ela treme, ela trina.

Não vá.
Eu vou.
Não vá. 
Eu vou.
Não vá.
Eu quero ir.

Se eu pudesse,amá-la-ia.
Já que não posso amar ela.
Se eu pudesse amá-la ia.
Já que não posso amar ela,
Tomara que ela já queira.
Meu coração por ti gela.
Tomara que ela já queira. 
Meu coração por ti gela.

Não vá...

·         A Dança e a Alma

A dança?Não é movimento
súbito gesto musical
É concentração, num momento,
da humana graça natural

No solo não,no éter pairamos,
nele amaríamos ficar.
A dança-não vento nos ramos
seiva,força,perene estar
um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado...

Onde a alma possa descrever
suas mais divinas parábolas
sem fugir a forma do ser
por sobre o mistério das fábulas


·         Carlos Drummond de Andrade
                                                                       

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