domingo, 10 de fevereiro de 2013




      9.  PEDRO
... e os sonhos, quais retalhos costurados em sua alma, impulsionaram-no a partir.

          
Do mais profundo de minha memória, de um lugar de encantamentos, surge PEDRO.

Pedro, moço de pele negro-azeitonada,  lábios grossos, boca de sorrisos, fala mansa, olhos de mel, trabalhava em nossa casa, em Barbalha. Cuidava de nosso gado, abastecia nossa casa de água e esperava, agradecido, as ordens de  Donhaci( era assim que ele chamava minha mãe).



Nos fundo de nossa casa, no terreno que papai adquirira, em um quarto bem arejado, ele morava. O quarto de Pedro.

De onde surgira? Se papai sabia, nuca nos revelou. Pedro, por mais que tentasse, não podia esconder sua fidalguia. A bondade nele inata, revelava seu caráter de homem bom, complacente, calmo e prudente. Um rei ou príncipe nós, os primeiros Landim Luna, nele víamos.

Em nossa casa, mesmo antes de alfabetizados, éramos presenteados com livros. Dois dentre eles, nossos preferidos: História do Brasil para Crianças, de Veriato Correia e O Bonequinho de Massa. Este último, as delícia de meu irmão, Aristênio.

Como de costume, estávamos após o almoço, deitados com nosso pai em sua cama, ouvindo dele a leitura que nos revelava nosso Brasil. Os navios negreiros, a escravatura, a Lei Áurea, o tema abordado, porque desejávamos seguir o roteiro organizado pelo autor, e aquele era o capítulo proposto.

Deparamo-nos com a degradação de um povo livre, que se tornara escravo. Aquele tema mexeu enormemente com nosso imaginário. E como Pedro era nosso amigo, nosso irmão, do livro passamos a falar nele.


Papai, mais uma vez, nos recomendou que por nada, nunca, atravessássemos o limite que estabelecera em nosso quintal, nosso chão e o chão de Pedro, e acrescentou: “Pedro, meus filhos, é sozinho no mundo, sem pais, sem irmãos, sem família. Dele mesmo, só tem a vida. Nem pátria ele tem. O Brasil lhe foi imposto através de seus avós. Ele não tem nome, nem registro. Para ele, nós somos sua família. Eu o trouxe para morar em nossa casa para que soubesse quanto confio nele. Pretendo, brevemente, construir com ele, sua cabana naquele terreno, ao lado do curral de nosso gado. Ele é gente como a gente. Depois que vocês curarem seu coração,  poderá ter sua terra, seu chão.”
                                                                                                                                             
Aquelas revelações de nosso pai somadas à leitura do livro, nos deixou impressionados. Quem seria Pedro? Para mim, filho de um rei. Um príncipe a quem cabia reger um povo. Aécio, de tão emocionado, nada falava. Aristênio, pavio curto indignado, dizia: “papai que coisa feia, que covardia fizeram com a família, com o povo do nosso Pedro.” Pulando da cama correu em busca da mamãe. Esta, ao se inteirar do assunto, achou que era muito cedo para  nos depararmos com o horror da escravatura. Quanto á cidadania do Pedro, exigiu de papai providências. A ela caberia sua alfabetização. Iniciou-a tão logo, a par da história, Pedro se mostrou interessado. 


Como nos fazia bem ver os dois, todas as noites, sentados à mesa, aluno e professora! Ele, inteligência privilegiada, ria alegremente assinando o nome, Pedro. Mas, e o sobrenome? O que fazer? Papai resolveu o problema. Como o fez?  Junto as Autoridades Municipais. E tão logo sentiu que o amigo se curara, ergueu sua cabana. O azeitonado alegre nos mostrava contente, as macaxeiras, batatas e ananás, plantadas ao redor de sua nova morada.

Um dia papai  queixou-se de dores que o incomodavam. Como tinha medo de médico, suportou-as a manhã inteira entre vômitos e chás. À tarde,  rendeu-se:  "Chamem  Lyrio por favor, chamem o Lyrio, já não suporto esta dor" . 

Mamãe correu, ligeira, a procura do cunhado, doutor Lyrio Callou. Tia Cinobelina, que nunca vira o irmão doente, desabou, e, com ela, mãe Anginha.

Apendicite? Peritonite? Indagava-se o doutor. Papai, ardendo em febre, e urrando de dor, não se apercebia que sua vida se esvaia. “Precisamos de muito gelo” exclamou doutor Lyrio. “Corram. Avisem a Zé Quental que feche sua sorveteria. Todo o gelado lá existente servirá para minimizar a febre do Jesus. Se ele conseguir vencer esta noite, sobreviverá. Apressem-se, corram, precisamos de muito gelo. Todo gelado de Zé Quental se acabará logo... Nada posso garantir... Se dispuséssemos de gelo, seria diferente.”
                          
Na época, havia no Cariri apenas uma fábrica de gelo na cidade de Crato. Sem carros, e situando-se a aludida cidade distante da nossa, o que se podia fazer? 

Mamãe sempre serenava,  tornava-se paciente, centrada, atuante, quando se defrontava com a dor, com perdas e medos. Saindo do lado do marido, que por ela gritava: “MARIA.” Era assim que ele a tratava nas horas difíceis, e quem sabe, nas horas do amor...

Mamãe não o atendeu. Ajoelhada no piso de nosso quarto, fechando os olhos Invocou: “ Vinde em meu Socorro, ó Mãe Carinhosa”. 



N. S. do Perpétuo Socorro

Demorou-se uns cinco minutos, chamou pelo amigo e ajudante, Pedro. Este, que até então ficara aflito, vendo-a tão serena, serenou com ela. Ela lhe disse: “Nossa família corre um grade perigo. Eu a ponho agora, nesta terra, em tuas mãos. Vá até ao Crato, Pedro, e traga gelo para com ele garantirmos a vida de meu marido. Fazes isto por nossa família"?

Ajoelhando-se, ele lhe pediu a benção. Ela o ergueu após abençoá-lo. Sentou-se à mesa pegou papel, tinta, pena e escreveu uma grande carta relatando a situação do marido e solicitando que a fábrica enviasse, diariamente, pelo preço que quisesse, barras de gelo para sua casa em Barbalha.  Enquanto isso, o atleta Pedro corria em disparada  ao cercado da Malhada, situado além do Riacho do Ouro, para pegar os velozes cavalos que seu Dijesus,( Jesus Luna) mesmo contrariando a esposa, teimava em tê-los bem treinados e lindos


Antes de o sol avisar  sua chegada, Pedro pulou de sua montaria na casa de número 125 da rua Pinto Madeira em Barbalha, portando nos braços treinados e fortes, uma generosa e grossa barra de gelo.

Arroxeado, tiritando e cambaleante chegou até a porta do quarto e entregou nas mãos daquela mulher que lhe ensinara a ler, a escrever e ver a vida por um novo prisma, o gelo suspirado, garantidor da vida do marido. Ali mesmo, perdendo as forças, desmaiou. Antes porém, falou baixinho, sussurrando:  "Deu certo. A mãe do Perpetuo Socorro me deu as asas dos seus anjos. Donhaci, não chore. Sua amiga mandou lhe dizer que seu marido vai ficar bom. Não tenha medo, é o recado que ela mandou pra senhora".

Nossos pais viajaram. Foram ao Recife, onde um renomado cirurgião os esperava. Titia Nair assumiu a direção de nossa casa. Ela foi sempre, para nós, uma segunda mãe. Creio que, se alguém nos perguntasse se fazíamos distinção entre ela e Maria Iaci, ficaríamos com caras de bobos sem saber a resposta. Tínhamos nove tias paternas, três materna, mas apenas uma titia, titia Nair.
                                   
Nair Maciel Landim, a titia dos Landim Luna




O tempo voou... A alegria em Barbalha era imensa. O filho, Jesus, que fizera tanta falta, anunciara sua volta. Os operários da fábrica e os da sapataria contrataram um fogueteiro e a Banda de Música da Cidade e esperavam o patrão amigo, junto ao olho d’água, na ponte sobre o rio Salamanca.

Ao estouro de foguetes e do som cadente de um dobrado, vitorioso, Jesus Luna adentrou a cidade. Passou por sua casa; não se deteve. Rumou firme até aos pés do santo padroeiro da cidade, Santo Antônio, portando no peito uma fita verde em homenagem a Bela Mãe que o salvara.

Pedro, de pé, meio sem jeito, encabulado, quedou-se junto à máquina de costura onde a patroa se encontrava. Pigarreou, meio atrapalhado, comunicou-lhe que decidira partir em busca de um grande chão, no Amazonas.

Ela não quis acreditar que aquele moço tão dedicado, decidira por sua vida em risco, entregando-a nas mãos de “bárbaros”que seduziam os pobrezinhos de Deus com promessas de uma nova Canaã.
Nenhum argumento o demoveu da decisão tomada. Nós, seus irmãos menores, seus mais caros amores, o perdemos porque em suas veias corriam sonhos de florestas imensas arrebatadas de seus ancestrais, de seus antecessores.            
                         
                           


Adendo 
Recordando nosso amigo Pedro, veio-me o incontido desejo de homenagear nosso professor de História, doutor Marchet  Callou.

Em suas magníficas aulas, nos transportava a lugares por nós nunca sonhados. Quase sempre as iniciava declamando poesias, poemas, relacionados aos conteúdos que planejava abordar. Luís Vaz de Camões, o português, e o poeta brasileiro Castro Alves, seus preferidos, com seus linguajares incomparáveis, pelo professor tão magistralmente interpretados, além de nos ajudarem a fazer leituras,  a contextualizar fatos da vida, mais ricamente do que os livros das diferentes disciplinas nos apresentavam, tornaram-se nossos mais caros amigos  e objeto de nossas conversas e discussões.

Concomitantemente, o antenado professor de Português, padre Agostinho Mascarenhas, nos incentivava a transformar sonetos em prosa e à análise lógica de estrofes do poema épico, Os Lusíadas, de oitavas de versos decassílabos, de rimas cruzadas nos seis primeiros,  e emparelhadas nos dois últimos  (abababcc).

Fecho os olhos e retorno a minha Barbalha. No silêncio sagrado de uma pequena sala do prédio do  Gabinete de Leitura, onde funcionava o curso ginasial do Colégio Mater Salvatoris, depois Colégio Nossa Senhora de Fátima, escuto emocionada e reverente, nosso inesquecível professor de História, com sua voz inconfundível, declamando de Castro Alves: 


                                            Voses D'Áfica  ( última parte)
                                                                     Castro Alves         


Foi depois do dilúvio... um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cam! ... serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá. . . "

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o nômade faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa — arrebatada —
Amestrado falcão! ...

Cristo! embalde morreste sobre um monte
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito...
escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...

São Paulo, 11 de junho de 1868



Aide Luna Parente

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